08 novembro 2006

A reportagem perdida



Cansei-me de ter esta prosa guardada. Está feita há meses, quando ainda pouco se tinha escrito sobre o assunto. Devia ter saído na extinta SLANG. Os donos desapareceram. A prosa não.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

BURAKA SOM SISTEMA
E DURO, E DURO, E DURO…


Texto de Pedro Gonçalves aka Boldfinger
Ao som de Diplo, Favela Strikes Back (Hollertronix 2005); Cocteau Twins, Lullabies to Violaine (4AD 2006); Spank Rock, YoYoYoYoYo (Big Dada 2006)
Fotografias de Ana Gilbert


Sexta para sábado, 19 para 20 de Maio, cerca das três da manhã

Há dias em que determinadas coincidências fazem ponderar, ainda que por escassos instantes, sobre a existência de uma qualquer força cósmica/espiritual que organiza cruzamentos entre pessoas. Numa tarde de sexta-feira de Maio, sabendo que iria poucos dias depois entrevistar o Buraka Som Sistema, sento-me em frente a um browser e faço uma pesquisa no Google pelo nome do colectivo. Aparece então, de pronto, a indicação do albergue do Buraka Som Sistema no MySpace (www.myspace.com/burakasomsistema) e aí, por sua vez, deparo-me com o facto de que, no serão desse mesmíssimo dia, o Clube Mercado, na Rua das Taipas, receberia a segunda actuação mensal deste pioneiro projecto de exploração do universo do kuduro. Nem foi tarde nem foi cedo.

Seriam, portanto, umas três da manhã e das colunas do Mercado saíam beats digitais a puxar pelos graves, apontamentos electónicos a esticar os agudos e a prestação de três MCs tão diferentes como presentemente dedicados à difusão, em Lisboa, daquilo que diariamente se vai fazendo em Luanda em matéria de música assumida e ostensivamente hedonista.

No Clube Mercado estão muito mais pessoas brancas do que pretas. Isso surpreende-me sobremaneira, mais ainda quando recordo 26 anos a viver junto de bairros como o 6 de Maio e a Cova da Moura, ali mesmo juntinho à Damaia. Ora se o kuduro é de inspiração angolana e é conhecida a mobilidade em massa da comunidade africana para locais de prazer nocturno com música a condizer com as raízes, que coisa estranha se passava ali? De onde saíam, inclusivamente, alguns grupos de betos engomados que ali aterravam? Hoje a explicação parece-me relativamente simples: além do engano que por vezes se dá quando se escolhe um espaço para passar umas horas, o Buraka Som Sistema faz aquilo que mais ninguém faz: tornar acessível a ouvidos, digamos, “ocidentalizados” um som que na sua génese é sobretudo uma dança frenética, vagamente erótica e muito ligada à maravilhosa negritude do tom de pele. O que há, portanto, é uma data de curiosos, mais um número apreciável de freaks que está já perfeitamente convertido a esta forma de queimar calorias de forma muito pouco onerosa. Surpreendentemente, dos mais improváveis corpos saem as mais inspiradas manobras de dança.

No formato “ao vivo”, o Buraka Som Sistema tem em Lil’ John e Riot (ambos da Cooltrain Crew) os manipuladores dos discos e em Kalaf (Spaceboys, 1-Uik Project, etc. etc. etc.), Conductor (Conjunto Ngonguenha, entre numerosas outras colaborações) e Petty (ilustre adolescente desconhecida com o diabo no corpo e na voz) os MCs que colocam as palavras de ordem em seu sítio, em jeito de hooks e word-ups também comuns a outros géneros. O que ali se passa é, basicamente, kuduro. Mesmo que haja quem lhe chame nu-kuduro, kuduro digital ou kuduro progressivo. E o calor, que em Lisboa já não é pequeno na ocasião, atinge naquela cave níveis absolutamente lânguidos.

Sexta, 2 de Junho, cerca das quatro da tarde

Não estou na Buraca. Estou em Campo de Ourique, bairro lisboeta há muito conhecido pela sua produtividade em matéria musical urbana. É aí que se situa a Enchufada, de que Lil’ John e Kalaf têm vindo a ocupar-se nos últimos tempos. Além de funcionar como editora, na Enchufada é já possível encontrar um mini-escritório e um estúdio dividido entre régie e sala de gravação. Kalaf e Lil’ John já por ali andam, como todos os dias, e à medida que vão desfilando nos monitores do estúdio os temas do próximo álbum do 1-Uik Project, com edição aprazada lá para Setembro, vão também chegando Riot e Conductor. A ocasião serve ainda, não apenas para ouvir aquilo que está já feito para o primeiro EP do Buraka Som Sistema (que inclui temas como “Yah!”, “Wababa”, “Com Respeito” e “Sem Makas”), como, para delícia e aprendizagem do repórter, fabricar no momento uma compilação com alguns temas representativos do kuduro que vem sendo feito em Angola e no qual, à falta de representantes portugueses do género, o colectivo se vai inspirando. Dizem, sem reservas, que todas as semanas conseguem ouvir produções cada vez mais evoluídas, ao mesmo tempo que vão exploirando os universos de gente como Dog Murras e Sebem. Sebem que, curiosamente, é o autor de “Felicidade”, que há não muitos anos foi praticamente apresentado por Hélder, o Rei do Kuduro como uma produção própria, é-me então contado. A opinião sobre esse fenómeno monárquico do kuduro é, de resto, consensual entre os meus interlocutores: fez mal ao género. Tenho a certeza de que muitos desconfiariam já desse facto.

Nos temas, ainda a precisar de mistura, trabalhados para o EP de estreia, o Buraka Som Sistema faz por “organizar” aquilo que ao vivo é exponencialmente mais caótico, espontâneo e permeável às surpresas momentâneas. A ideia é, então, criar linhas rítmicas acopladas a melodias simples e electrónicas sobre as quais se espraiam as palavras de ordem e de prazer debitadas em boa parte por Petty e adornadas pelo tom masculino de Kalaf e Conductor. O EP é, por assim dizer, uma espécie de teste público para ver o que dali pode vir num futuro mais ou menos próximo, conforme a reacção de quem o escutar. É que não deixa de sentir-se no ar a dúvida: resultará em estúdio aquilo que tão bem resulta em palco?

A génese do Buraka Som Sistema pode, de acordo com Lil’ John, identificar-se no final do Verão de 2005, numa viagem a um lendário ícone da cidade de Lisboa: a Feira da Praça de Espanha. “Fui eu, o Kalaf e o Rui (Riot). Andávamos a falar disso já há algum tempo e houve um dia em que decidimos lá ir e comprar umas três compilações de kuduro. Comprámos uma chamada Angola em Festa, uma do MC ou DJ Costeleta e outra coisa qualquer. A primeira coisa que fizemos foi fecharmo-nos, eu e o Rui, a ouvir os beats e a fazer como que re-edits dos sons. Uma coisa que achámos engraçada, e nós não percebemos muito de notas de música, foi o facto de haver sons que estavam fora de tom com as vozes e o resto. Por exemplo, havia casos em que, por cima de um instrumental, o que estava a acontecer era uns a passar o microfone aos outros. Quase que se ouvia o microfone a passar de mãos. Mesmo os próprios refrões aparecem na música numa altura qualquer. É fixe, mas numa versão mais ocidentalizada das coisas não faz muito sentido. Essas sempre me pareceram barreiras para que o kuduro fosse uma música passível de ser ouvida por muito mais pessoas”, explica o DJ e produtor. A cirurgia aplicada aos sons originais foi, em boa parte, motivada por duas noites que então a Enchufada tinha agendadas, uma para o Lux, em Lisboa, e outra para a Casa da Música, no Porto. A Casa da Música foi a madrinha do Buraka Som Sistema: durante a actuação, “e no Porto nunca se vêem muitos blacks” (Lil’ John), começaram a difundir a mensagem de que aquele era o som da Damaia, da Buraca, da Reboleira. Pouco tempo depois, Conductor junta-se à missão e traz consigo “a MC sensação do kuduro lisboeta”, Petty. Nasce então “Yah!”, um dos temas a incluir no citado primeiro EP do colectivo.

Se tanto ao vivo como em disco há na facção masculina do Buraka Som Sistema o lado mais cerebral que define as coordenadas da música, é na adolescente Petty que se encontra a ligação com os prazeres imediatos da dança que sempre faz falta. Conductor explica a “contratação milionária”: “A Petty é sobrinha da minha namorada. Apareceu lá em casa e vi que tinha muito power. Tudo o que ouve, decora e canta. E muitas vezes tem mais power do que o artista original. Achei que não podia ficar em casa trancada. Primeiro pu-la a gravar umas cenas de rap. Ela estava um bocado de pé atrás em relação ao kuduro, porque ainda é visto como música dos subúrbios. Há um bocado aquela divisão: o semba é música da city, o kuduro é música do gueto. Mas quando viu a motivação e o apoio das pessoas ficou mentalizada para isto”. Antes disso, também Conductor havia recebido um convite de Kalaf para dar uma mãozinha ao Buraka Som Sistema. A motivação de Kalaf teve, em boa parte, origem na banda-sonora desse Verão, precisamente o Conjunto Ngonguenha. “Achámos que era necessário o contributo de alguém que não tivesse uma ideia tão formatada sobre a dance music, alguém que chegasse com ideias frescas sobre o que estávamos a fazer. Como no Conjunto Ngonguenha o Conductor conseguiu mesclar de forma fantástica o hip hop com certos elementos da música angolana, era a pessoa certa. Quando falei com ele, perguntei-lhe quais eram os MCs à sua volta com energia e vontade de entrar numa coisa destas. Disse logo a Petty”, recorda. No momento estão já, “na lista de espera”, outros MCs para fazer outras coisas com o Buraka Som Sistema. Um deles é o rapper Tekilla.

Antes de se ligar o gravador, repórter e interlocutores estiveram longos minutos a discutir as designações já aventadas para a música do Buraka Som Sistema. Olhando para um flyer relativo ao Popular Soundclash, que decorreu em Lisboa na noite de Sto. António, lia-se “nu-kuduro” e em boa verdade nenhum dos presentes encontrava a lógica da definição, mesmo que um ou outro fosse mais condescendente com a velha questão da rotulagem. Repesco o assunto, agora para registo em fita. Conductor é o primeiro a chegar-se à frente: “A minha descrição é uma mistura de kuduro com música electrónica. O kuduro em Angola tem-se desenvolvido nos últimos três anos, tem chegado aos samples, e acredito que tem uma grande margem de progressão até ser um estilo sólido. Por isso nu-kuduro é demasiado forte”. Depois vem Lil’ John: “Uma jornalista do Público chamou a isto kuduro progressivo”. Riot: “O pessoal achou piada porque faz a ligação com o house progressivo e com tudo o que soa um bocadinho diferente, mesmo que não tenha progressão nenhuma. Identificamo-nos todos com o nome kuduro progressivo porque o estilo original ainda está em constante progressão. Todos os dias saem beats diferentes”. Kalaf, o mais intransigente de todos quando a conversa ainda era informal, prefere aqui calar-se em aparente concordância. Quando se fala de um dos mais proliferos criadores angolanos do estilo, Dog Murras, recorda-se que o que actualmente faz é misturar elementos da música angolana numa base dançante e electrónica. Chama-lhe kazukuta. “Tem que ser por aí, uma definição qualquer completamente nova”, diz Lil’ John. Imediatamente vamos do “psichichiri” ao “brokenduro”.

A forma como um determinado meio português se tem entregue às festas protagonizadas pelo Buraka Som Sistema é, para estes músicos, o resultado da tal fusão do kuduro original com elementos musicais que todos eles assimilam, do house ao drum’n’bass. É essa aproximação a uma realidade “ocidentalizada” e, mais concretamente, portuguesa que faz com que, por exemplo, nas sessões da Cooltrain Crew, as reacções mais efusivas surjam ao som de remisturas feitas para gente como os Taxi, os Blind Zero ou os Blasted Mechanism. É assim que o Buraka Som Sistema olha para a disseminação da sua música, mesmo havendo dúvidas sobre a viabilidade da dita nos espaços africanos mais “tradicionais”. Porque em relação ao kuduro propriamente dito não há pruridos, como verbaliza Conductor: “O kuduro é o género de música africana que põe mais gente na pista. Na noite africana há muito o vestir a rigor e o não-me-toques, mas quando entra o “Comboio” (um dos temas-emblema do kuduro angolano) é a loucura”. Kalaf acrescenta: “Essa é a beleza da música pop, a capacidade de juntar pessoas em torno de uma bandeira só, que é a nossa música. Estamos a falar do mundo lusófono. Todos nós temos um passado em África e todos nós temos um passado na Europa, que para nós é Portugal. O “Booty La La” (dos Bugz in the Attic) bate em Londres. Aqui bate a “Felicidade”, o “Comboio” ou o “Yah!”, que acabámos de produzir. Discute-se muito se a música portuguesa consegue apelar às massas, e é também por isso que fazemos o que fazemos”.

Ao mesmo tempo que assumem claramente estar ainda à procura da sua identidade suprema, os elementos do Buraka Som Sistema têm o feedback de pelo menos dois DJs que passaram já “Yah!” em noites londrinas com assinalável sucesso popular. “O factor que importa é haver elementos que esses DJs nunca ouviram. Quando ouvem o Buraka Som Sistema, além de haver um beat que podem usar na pista de dança, tentam identificar as coisas. “Tem um bocadinho de… Tem um bocadinho de quê?”. Vão ao Google e tentam perceber o que é. Não vou estar com falsas modéstias, esse foi um dos factores importantes que gerou isto tudo: descobrir uma cena massiva que estava a ser feita em Luanda e que pode ser tão nova aqui como no Japão”, afirma Lil’ John. Kalaf remata: “O mundo é tão pequeno que, se houver uma bomba em Lisboa, ela vai ouvir-se na Conchichina”. Sobre aproximações e comparações a géneros como o baile funk, o reggaeton ou o grime, entendemo-nos facilmente: as semelhanças estão no facto de serem músicas de periferia e de usarem meios relativamente rudimentares por falta de soluções melhores. Nada de confusões, portanto. Agora é a vez do kuduro. Progressivo, talvez. E, por ora, em Portugal esse está nas mãos do Buraka Som Sistema. Ali em Campo de Ourique.

3 comentários:

  1. Muito bom, como já te tinha dito antes! ;)

    Ah, pequena correcção, uma das donas pode ser vista sim, lá pelas ondas do Guincho, como se tivesse o mundo a dever-lhe alguma coisa, e não o contrário!...

    Razão tem o Jorge Palma. "Ai Portugal, Portugal, de que é que estás à espera..."

    Abraço e boas emissões. É uma pena a potência do emissor, que nos impede, na maioria das vezes, de te ouvir!

    MP

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  2. Gracias, amigo.

    Pode ser que as ondas do Guinho tenham fome...

    Quanto ao emissor, é provável que as boas notícias cheguem graças à net. ;)

    Grande abraço.

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  3. Nice.
    Ainda bem que a reportagem não se perdeu.
    Imaginava, mas não tinha a certeza, que a Slang tinha acabado. É pena.

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