27 outubro 2005

O estado da coisa cultural

Typewriter & Morrissey

Se a forma como os meios de comunicação se relacionam com os produtos culturais servisse de indicador para aquilatar do grau de desenvolvimento de um país, Portugal mostrar-se-ia nos dias de hoje tão débil quanto a candidatura de Mário Soares à presidência da República. Portugal vive, no momento presente, um dos mais tristes períodos no que à propagação da cultura através dos órgãos de informação diz respeito. E isso deve-se, quase exclusivamente, a um vírus a que pode chamar-se a Consagração da Mediocridade.

Em duas pinceladas se despacha o assunto televisão e o assunto rádio. Em televisão, traça-se o ponto médio entre a imbecilidade das propostas culturais e as prioridades das indústrias. Apela-se ao cidadão anónimo que não dispende um cêntimo em algo mais do que discos de grupos com origem em telenovelas ou em livros de socialmente tontos e tontas armados ao pingarelho. Ficam os programadores de consciência lavada pela ideia de serviço público. Na rádio, não se faz rádio. Faz-se propaganda, faz-se o favor à indústria do disco, faz-se a antítese da comunicação de e para pessoas. Com excepções que facilmente se enumeram.

A imprensa é, por norma, o universo onde habitam os mais relevantes pensadores da coisa cultural. O que facilmente se compreende, uma vez que pensar é coisa que se costuma fazer antes de escrever, ao contrário daquilo que amiúde se vê nos órgãos onde são proeminentes os profissionais conhecidos como "pés de microfone". Simplesmente, a imprensa que hoje em Portugal se dedica à citada coisa cultural é uma salada mal confeccionada em que as poucas folhas de alface ainda viçosas se enterram num emaranhado de molho e bolor. Vivemos hoje num país que despreza o que tem mais do que uma aparência vagamente apelativa. Os balões, por muito bonitos que sejam, rebentam-se com um alfinete.

Uma questão que ultrapassa por completo os plumitivos propriamente ditos é a incapacidade que os donos do capital têm para entender a forma como se comunica cultura para os públicos mais diversos. E isso resulta, sobretudo, de dois factores: por um lado, não é raro encontrar na liderança de grupos ou órgãos de comunicação quem sobre comunicação pouco mais sabe que coisa nenhuma. É um facto, por muito sinistro que possa parecer. Jornais, revistas, discos, livros, batatas, pensos higiénicos, detergentes para roupa sensível e amaciadores de cabelo são uma e a mesma coisa, para todos os efeitos. Em consequência, promovem-se jornais como se promovem amaciadores de cabelo. O que faz com que os primeiros não cheguem a parte nenhuma porque querem chegar a todos com investimento zero. Por outro lado, os profissionais que realmente sabem como escrever a cultura estão ou perdidos num limbo chamado emprego ou em situações muito pouco dignas no que à simples sobrevivência diz respeito.

Tal como na indústria do disco, em que as editoras chamadas independentes cumprem a sua missão com galhardia, também nos meios de comunicação escrita se saúdam os projectos de teor, digamos, alternativo. Esses, e quase exclusivamente esses, fazem muito mais do que aquilo a que são obrigados, rasgando convenções e desafiando obrigações, fazendo o manguito ao facilitismo e ambicionando o impossível. Se isto fosse um debate, o moderador pediria aqui os nomes e levaria com uma OP, uma Umbigo ou uma Mondo Bizarre. E calar-se-ia perante a evidência dos factos. Mas será descabido ambicionar comunicar a cultura para mais do que umas centenas de pessoas ou escassos milhares? Obviamente, não. A não ser que estejamos na Serra Leoa, o país com mais baixo nível de desenvolvimento conhecido.

No que à comunicação escrita para um número ambicioso de pessoas diz respeito, o cenário presente padece de qualquer coisa entre a esquizofrenia e a total ausência de apego pela pungência e pela actualidade. Por um lado, há os suplementos de jornais generalistas que se comportam sem a noção de que estão nas bancas protegidos por um título mais poderoso do que DN Música, Y ou Actual. Frequentemente, jogam o jogo fictício da concorrência como se esta fosse mais importante do que a dedicação ao leitor que se traduz na sua fidelização. Concretamente, o primeiro sabe o que é o mercado mas está escondido na contracapa do DNA; o segundo é cada vez mais um all-star team ao qual infelizmente não foi explicado, por exemplo, que duas páginas de notícias semanais sobre novos filmes ou novas tricas representam papel deitado à rua; o terceiro, entalado numa publicação onde a luta mais feroz é a dos egos, só recentemente acordou para a vida e se apercebeu de que o cinzentismo dos instalados só é prestigiante nas obsoletas cartilhas de jornalismo (Jorge Manuel Lopes e Miguel Francisco Cadete são um alívio no contexto).

De algo como o BLITZ não me fica bem falar. Ainda que não seja despropositado afirmar que o que ali existe é um monstro de diversas cabeças, umas mais pensantes do que outras.

Não há, no momento presente, espaço para os mais interessantes pensadores da coisa cultural fazerem o seu exercício jornalístico de uma forma que sustente as necessidades básicas de alimentação. Há, no máximo, as avenças, as situações mais do que precárias dos recibos verdes e as generosas contribuições inseridas na lógica do "trabalhar para aquecer". A responsabilidade reside, sobretudo, em quem não tem olhos e ouvidos para os outros, os que, não sendo barões do capital, são-no do conceito de actualidade, pungência e acutilância. Quando aquilo a que se ambiciona se resume a uma marcação cerrada a esparsos brilhos como os Prémios MTV ou o Rock in Rio Lisboa, a radiogradia parece estar feita. Mesmo que, no caso dos exemplos referidos, a música (a arte mais consumida de todas) seja apenas um acessório no seio de um folclore maior.

Desculpai o gentil leitor mas parece-me estar ali a ver alguém a quem posso vender um seguro de vida.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

14 outubro 2005

E a herança vai para... Damian Marley

Damian Marley

Na música, como em muitas outras coisas, as heranças podem ser uma coisa lixada. Não só porque podem ter que pagar impostos como produzem frequentemente no(s) herdeiro(s) a ansiedade do cumprimento de expectativas. Ora, muito felizmente, no caso presente o pesado apelido Marley não só não transtorna a vida do mais jovem dos descendentes do rei do reggae como ainda o transforma num dos artistas jamaicanos mais relevantes dos dias presentes. Pela sua música, que, associada ao seu apelido, dará origem a combinações de palavras como "digno herdeiro".

Tendo começado a publicar álbuns em nome próprio em 1996, "Welcome to Jamrock" é apenas o terceiro disco de longa duração de Damian Marley. Precisamente por alambar com o apelido, a música e a responsabilidade de ter-se assumido como sério difusor das feridas sociais da Jamaica (como que por oposição a um certo clima carnal-festivaleiro oriundo de universos como o dancehall "moderno"), não lhe sobra muito tempo para fazer discos consistentes. "Welcome to Jamrock", o álbum, acaba por ser muito mais do que isso.

Antes de o álbum ter visto recentemente a luz do dia, já o single "Welcome to Jamrock" havia provocado entusiasmadíssima aprovação junto de quem por ele passou os ouvidos. Para o New York Times, junta-se a uma potencial lista das candidatas a canção da década. Num plano mais terreno, "Welcome to Jamrock" é só um colossal cruzamento de toasting acutilante sobre um reggae dolente apoiado em efeitos sonoros deliciosos. É, se se quiser, uma aproximação contemporânea ao roots reggae com o auxílio, por exemplo, do arrepiante sample onde se ouve "Out in the street they call it murder". Isto para mostrar ao mundo que na Jamaica as atraentes brochuras turísticas convivem naturalmente com um universo urbano ainda carregado de miséria. Nenhuma descrição da canção lhe é, porém, suficientemente fiel no grau de relevância que ostenta.

De regresso ao álbum, "Welcome to Jamrock" é um exercício de estilos que, à conta de uma invejável capacidade de soar interessante, não se dispersa até esfumar-se e transformar-se em coisa nenhuma. É que Damian Marley tanto nada de bruços nas águas do reggae como de costas nas do dancehall. Mas o intervalo citado é pequeno para Damian Marley. O jovem conhecido também como Jr Gong é também mais do que capaz de assimilar a samplagem e o loop utilizado no mais do que propalado "Rude Boy Rock", dos Lionrock (conferir em "All Night"); de abordar a variedade tecnológica para a criação de efeitos diversos, uns mais interessantes do que outros (ouvir "For the Babies" e "Hey Girl"); ou de trazer para si as palavras de um dos gurus do hip hop de pendor mais respeitável, como Nas (em "Road to Zion").

"Welcome to Jamrock" é, naquilo que o termo "contemporâneo" pode envolver, um álbum que, nesse cruzamento às vezes fatídico entre a cultura jamaicana e o mercado norte-americano, se levanta um bom bocado mais alto do que praticamente todos os outros com intenções semelhantes.

Mas isso pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

Danger Mouse & MF Doom, Cartoons Auditivos SA

Danger Doom

Naquilo a que muitos gostam de chamar underground no universo do hip hop, Danger Mouse e MF Doom são dois nomes que provocam sentida vénia. O primeiro como produtor, conhecido a partir do momento em que o seu "Grey Album" (cruzamento musical entre o "White Album" dos Beatles e o "Black Album" de Jay-Z) provocou calafrios à indústria do disco e se tornou num considerável sucesso de download livre autorizado. O segundo como MC. "The Mouse & The Mask" resulta, como está fácil de perceber, da colaboração dos dois. E é um disco garbosamente lúdico.

Ambos os fabricantes de "The Mouse & The Mask" têm um fascínio pelo universo não apenas imagético dos cartoons, assimilando e reciclando os sons alegadamente divertidos que muitas vezes acompanham as imagens. Daí que o álbum seja, efectivamente, uma deambulação de Danger Mouse pelos samples mais "cartoonescos" da sua colecção e mais uma afirmação do flow e do conteúdo também lúdico do rap de MF Doom. Mesmo que, no caso de MF Doom, pelo meio da "brincadeira", exista quase sempre um espaço subliminarmente sério.

"The Mouse & The Mask" não é, como já se escreveu, um disco de hip hop que muda uma vida. (Aliás, seria interessante tentar enumerar cinco que o façam nos últimos cinco anos, já que estamos no assunto.) É, tão somente, uma produção viciante de Danger Mouse em que à delicadeza rude de MF Doom se juntam ainda, por exemplo, os contributos dos respeitáveis Ghostface e Talib Kweli. Para usar uma frase batida, se este ano só lhe apetecer comprar um álbum de "hip hop lúdico"...

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

11 outubro 2005

O ar Jacinto Lucas Pires era escusado...

Devendra Banhart

Será, certamente, a enésima vez que o digo, mas no dia em que toda a música desaparecer só nos lembraremos das canções. Podem manter-se referências históricas, biográficas ou outras no disco rígido humano, mas nessa altura toda a música que recordaremos será a música das canções. Por muito que tenhamos crescido a explorar música que nada tenha que ver com canções. Assim se explica, por exemplo, que um pai saiba hoje cantar com o filho as canções que este aprende na escola. É a memória selectiva e eu, pelo menos, tenho-a apurada em demasia.

Isto a propósito de "Cripple Crow", o novo, o quarto, álbum gravado em nome individual por Devendra Banhart. Devendra Banhart constitui para o signatário um daqueles casos caricatos de preconceito (se quiser, substitua pela palavra embirração) inicial e rendição posterior. Não serei tão radical quanto um brilhante camarada nortenho, que sempre fez gala em desprezar os cantautores barbudos, mas a verdade é que há um certo imaginário hippie que me provoca enjôos moderados. Ainda hoje, ao fim de consideráveis anos a ouvir música compulsivamente, sinto a falta de vontade de ouvir determinado disco ou determinado artista. Como ouvi há muitos anos, "não oiço os Pink Floyd porque tenho medo de gostar".

"Cripple Crow", o primeiro álbum de Devendra Banhart sem o selo da Young God, de Michael Gira, instala-se sem sobressalto nesse universo citado das canções. Não porque o criador tenha contado, para este registo, com um pouco mais do que a sua voz e a sua guitarra, mas porque na própria natureza dessa voz está a capacidade de desenhar melodias com que vozes muito mais poderosas não sonhariam. Esse é um dos méritos maiores de Devendra Banhart: as suas canções podiam ser todas a capella.

Tem muita fruta, este disco. Tem 23 canções que se desdobram entre, por exemplo, o pacifismo e um certo imaginário genérico latino-americano. Tem acompanhamentos e tem orquestrações. Tem vozes de coro e chega mesmo a ter groove (em "I Feel Like a Child"). Tem mais ambição, o que num disco é sempre perigoso. Tem uma hora e um quarto, o que também é um desafio ao agora. E tem esse delicioso "Santa Maria da Feira", inspirado na passagem de Banhart pelo Festival Para Gente Sentada. "Santa Maria da Feira" é um generoso delírio por ambientes latinos e bamboleantes, em que até pontualmente se ouve em sonhos artificiais o Quarteto 1111.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 Pouco Mouco.

10 outubro 2005

Autárquicas 2005 - Momento zen do dia

Carrilho e Bárbara

Neste caso, dispensam-se as palavras do escriba. Basta pensar nesses segundos finais do delicioso "Daily Show" de Jon Stewart e ver nas palavras publicadas no site da RTP imagem parecida à aqui depositada. Contexto: discurso de derrota. A saber:

"Ladeado por vários apoiantes, entre os quais o psiquiatra Daniel Sampaio, a eurodeputada do PS Elisa Ferreira e a mulher, a apresentadora de televisão Bárbara Guimarães, Manuel Maria Carrilho afirmou-se de consciência tranquila com a sua prestação na campanha". (...)

"O candidato socialista dedicou grande parte da sua intervenção a agradecer a todos os seus colaboradores, ao secretário-geral do PS, José Sócrates, e à direcção do partido, sem esquecer "um agradecimento muito especial, claro, à Bárbara", sua mulher".


Embriaguez completa dos sentidos.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

08 outubro 2005

Desemprego morre em Portugal

A Dormir

Por acaso calhou ser em dia de reflexão para as eleições autárquicas. Num sábado iniciado numa Loja do Cidadão, ocorreu-me aquilo que qualquer candidato a qualquer lugar político com poder desejaria anunciar: "Desemprego morre em Portugal". Pois bem, esta é a conclusão a que cheguei: não existe desemprego em Portugal.

No máximo, existirá aquilo a que pode chamar-se trabalho não-remunerado. Numa situação denominada de desemprego, o cidadão, colocado entre as honrosas instituições Finanças e Segurança Social, depressa conclui que nenhum governo o deixa sem trabalho. Ao canditatar-se, por exemplo, àquilo que é conhecido como o Subsídio de Desemprego, o cidadão está simultaneamente a arranjar trabalho. Muito trabalho. Imenso trabalho. Amiúde, trabalho inexplicável mas exigido.

Ora se esta tresloucada labuta é proporcionada pelo Estado mesmo quando advém da acção de privados, o Estado está a deixar os seus filhos sem falta de trabalho. Só me incomoda o facto de, por exemplo, há três anos ter abraçado convictamente esta oportunidade irrecusável e até hoje o Dr. Bagão Félix não me ter dado um cêntimo. Alegre-se, porém, cidadão! Isto não é desemprego! O desemprego não existe.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

07 outubro 2005

Autárquicas 2005 - Mas o que é que os Rádio Macau têm que ver com isto?

Radio Macau

Ele há coincidências interessantes. Esta noite, num caso excepcional entre as últimas noites, mais cobertura televisiva da campanha às Autárquicas 2005. E, às tantas, vem-me à cabeça uma ficção que de forma escandalosamente generosa me foi pedida aqui há atrasado para o "Disco Pirata", o livro e o disco dos Rádio Macau.

Segue já a seguir e é inspirada na canção "Cidade Fantasma", do citado grupo português. Não era intenção fazer deste um espaço publicitário de coisa passadista, mas neste caso faz sentido.

Mas isso pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.


CIDADE FANTASMA

Alistem-se!, diziam eles. A propaganda, infiltrada no imaginário colectivo pelos mancebos romanos sistematicamente espancados por Astérix e Obélix, ecoa agora entre um tímpano e outro como jamais havia acontecido. Recordo facilmente aqueles rostos torturados por porrada de criar bicho, resignados com a sorte que lhes cabia. Eram rostos de inevitabilidade, de aceitação de uma das duas alternativas de vida em perspectiva: por um lado, levar nos cornos de uns quantos aldeões afeiçoados às suas coisinhas e às suas tradições; por outro, ter uma vida de orgias diversas. Ser-se funcionário dos Correios, vendedor ambulante de atoalhados ou industrial do Vale do Ave eram opções fora de questão.

Estamos em 2005 e, em boa verdade, nunca me passou pela ideia que alguma vez chegássemos a isto. Nem historiadores nem videntes alertaram a Humanidade para a possibilidade de isto acontecer. Quando um dia li a teoria que dá conta que, para uma geração ter qualidade de vida (conceito distante no tempo que agora tentamos alcançar através de listas de espera), a sua imediatamente anterior passaria por todas as privações e provações, não supus que alguém tivesse um dia que resolver a embrulhada que isso implicaria. E agora aqui me vejo eu, na fila com o letreiro que diz “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”, voluntário para dar corpo a esse movimento de repovoamento das grandes metrópoles do século XX. Por ora, não sei dizer em que estado se encontra Lisboa, Londres ou Nova Iorque, mas pelo que tenho visto na televisão a coisa está em tom cinzento escuro, que é o tom do abandono quando ainda se acredita que o abandono é apenas um estado transitório. Para ser claro, aquilo em que agora me vejo envolvido é o resultado do que foi definido pela Comunidade Internacional de Economistas Humanistas como o Êxodo Urbano. É um fenómeno que, no espaço de cinco anos, deixou todas as grandes cidades mundiais entregues, apenas e só, a quem as “dirigia” por alturas do primeiro referendo de carácter planetário. Com uma pergunta simples: “ainda acredita que vai ser feliz e que para isso muito continuarão a contribuir as elites próximas ou mesmo juntas do poder?”. O que ainda hoje me parece espantoso é que o colapso se deu no dia em que esse digníssimo factor chamado abstenção foi de 100 por cento (ou perto, uma vez que as citadas elites também têm cartões de eleitor). De cada vez que faltava a um qualquer acto eleitoral, sentia-me um vencedor anónimo, facto que era compensado por todas as alocuções pós-eleitorais captadas em directo para a rádio, a televisão e a internet. “Quero, em nome do meu partido, mostrar a mais profunda preocupação com os níveis de abstenção registados neste exercício democrático” – esta era a minuta dos discursos no período derradeiro da consulta popular, se bem me recordo no final de 2000. Havia quem dissesse que muitos de nós teríamos preferido a praia às urnas, quando na realidade muitos de nós preferimos abraçar com convicção e brio a campanha Tolerância Zero.

A coisa começou, portanto, há pouco menos de cinco anos quando todas as estações televisivas do mundo com intervalos para anúncios e entretenimento começaram a mostrar líderes políticos em marcha de agonia para os púlpitos onde habitualmente exercem publicamente aquilo para que estudaram – a retórica. Por essa altura já o conceito de fuso horário tinha sido abolido pela aliança Estados Unidos-Taiwan-Afeganistão e em consequência tudo se passou em simultâneo, em directo e a cores. Cinco minutos depois do encerramento das salas de voto, os canais estatais interromperam a emissão normal e, sem explicação, colocaram no ar música de teor remotamente religioso (uma vez que por esta altura também todas as religiões tinham sido abolidas) sobre fundo negro. Mais cinco minutos e morriam todas as empresas estatais e as bolsas de todo o mundo disparavam os índices dedicados às empresas de comunicação. Estávamos todos colados às estações privadas, portuguesas, inglesas, americanas, árabes, sul-africanas, neo-zelandesas. Em todo o lado a mesma coisa: ninguém votou. Foi o dia do consenso entre todos os comentadores políticos do globo. “A democracia bateu no fundo”, “O Homem canibalizou a sua liberdade”, “A responsabilidade é dos Estados Unidos” e “As nações do mundo decretaram falência” foram expressões proferidas e ampliadas na ocasião. Cinco anos depois, estou nesta fila com o letreiro “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”. Aqui cheguei depois de cinco anos de propaganda.

Mais preparada para a derrocada de toda a abóbada política do mundo do que o próprio conjunto de tarefeiros que a compunham, a Humanidade viu-se a partir de 2001 envolvida na mais importante revolução social da História recente. Foi como se, de um momento para o outro, o teledisco de “Everybody Hurts”, dos R.E.M., passasse a manual de instruções. A inovação: ao largar os automóveis topo de gama com barras de tejadilho para levar os esquis a passear ao Chiado, aos Champs Elisées ou à 5ª Avenida, a população rumou ao campo, aos pontos periféricos, respondendo assim afirmativamente ao decano apelo de voltar a povoar lugares afectados pela então muito propalada “desertificação”. E nesses locais está instalada até hoje, o primeiro dia do segundo Êxodo Rural. Nos anos mais recentes, não sei precisar quantos, e como orçamentos de Estado passaram a ser documentos perfeitamente inúteis dada a mobilização popular no sentido da orçamentação individual e familiar, foram vários os pontos altos na campanha do repovoamento das cidades paga com os últimos cobres das elites. Só de memória, recordo-me de ler, na qualidade de um de 487 destinatários de um e-mail supostamente humorístico, um anúncio publicado num jornal diário de uma pequena povoação do estado norte-americano do Texas – “Venha viver para Nova Iorque, a cidade que já consegue dormir. Finalmente terá o sonho americano”. Como me recordo, por exemplo, de ler sobre homens e mulheres de todas as ex-forças políticas portuguesas a percorrer as ruas de Cuba, Alentejo, empunhando faixas e distrribuindo panfletos em que se lia: “Lisboa e Porto esperam por si. Venha conhecer as vantagens de viver numa metrópole renascida”. Como é óbvio, nada tinha ainda renascido e era por isso que agora me encontrava na fila com o letreiro “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”. Segundo li, chegou mesmo a montar-se o famoso sistema piramidal para a aquisição de parcelas de cidades como Paris, Pequim, Nova Deli, Buenos Aires e Montreal. Como em todos os outros casos de sistemas piramidais, em que em tempos participei com a tarefa de vender comprimidos para emagrecer com vista à conquista de um automóvel todo-o-terreno e de um apartamento tipo loft junto ao Rio Tejo, também estes não funcionaram. Tornou-se, consequentemente, muito mais caro o metro quadrado em Montes, entre Tomar e Ferreira do Zêzere, do que em Milão, Zurique e Copenhaga.

Estou aqui porque os líderes que restam, apesar de não reconhecidos legitimamente, garantiram que haveria benefícios fiscais e um período de time-sharing numa cidade mundial à escolha com mais de três milhões de habitantes para quem se inscrevesse na primeira fase do segundo Êxodo Rural. Já me tinha, em tempos, escapado a privatização da EDP e da Brisa, mas desta vez não me apanhavam desprevenido. Certo é que, extintas todas as organizações dedicadas à colecta de impostos, a conversa dos benefícios fiscais era tudo menos verosímil, mas a ideia de fugir ao bulício do campo preenchia-me os sonhos há tempo assinalável. Vim para a Beira Baixa em 2001, meses depois da hecatombe democrática, e já nessa altura me senti sufocado pela presença de 300 mil pessoas numa aldeia com 28 quintais e 12 terrenos com mais de dois hectares. Lembro-me de, no dia em que cheguei, numa das últimas viagens realizadas pelo último exemplar Jumbo da Boeing, ter encontrado em Martineca do Rio algo de muito parecido com aquilo que há anos havia visto num sábado no londrino Hyde Park: rostos felizes no topo de corpos encaixados em espreguiçadeiras listadas de verde e branco. Como se todo o trabalho do dia, da semana, do mês e do ano estivesse já feito e todo o tempo restante fosse, na verdade, o tempo em que se vivia. Surpreendentemente, era isso mesmo que se passava. Foram precisas apenas três pessoas para organizar a vida em Martineca do Rio – um gestor agrícola, um ex-dirigente de um ex-grande clube de futebol e um engenheiro informático. A população ali decretada como activa, com idade entre os 35 e os 44 anos, trabalhava entre as 11h00 e as 13h00, de sábado a quarta-feira. Com um gestor agrícola, a terra produziu até ao canto do cisne, até não mais conseguir produzir para 300 mil pessoas. Ainda assim, Martineca do Rio era o topo de gama do triunfo do sector primário. Com um ex-dirigente de um ex-grande clube de futebol, a construção civil e as estruturas básicas desenvolveram-se em menos que nada e sem que qualquer verba fosse questionada. Assegurou-se assim a sobrevivência do sector secundário. Com um engenheiro informático, todas as relações interpessoais de natureza sobretudo profissional passaram a estar de tal modo acessíveis e adequadamente registadas que cedo desapareceu a inveja e se estabeleceu a harmonia. Não será necessário, portanto, enunciar outras razões para verificar a eficácia do sector terciário. E havia 563 homeopatas.

As cidades, as grandes cidades, são por esta altura cidades fantasma. São o último reduto de meia-dúzia de dementes que não ultrapassou o choque do Êxodo Urbano. O facto de todos eles serem os autarcas dessa época, algures em 2000, também ajuda à permanência. Na política, o comandante é efectivamente o último a abandonar o barco, como é mais do que sabido. Segundo sei, e nisso reside parte do fascínio que encontro em regressar a um mundo outrora triturador, nada mudou nas metrópoles à excepção da ausência de pessoas. A avaliar pelas imagens difundidas pela televisão, em Lisboa o Centro Comercial Colombo está há quatro anos aberto mas vazio e no Porto a Ribeira continua linda e acolhedora mas vazia. É assim por todo o mundo que já se disse civilizado mas que nunca mais foi avistado por quem quer que seja, à excepção de indivíduos com um cartão que diz “Press”.

Com base nessas imagens oníricas, nesta primeira fase somos 29 a sair de Martineca do Rio. O número máximo permitido neste primeiro mês é de 30 por cada aldeia com 300 mil habitantes. Franz Hubbard morreu esta manhã e, como o engenheiro informático está em primeiro lugar da fila, não houve tempo para proceder a uma substituição justa. Não sei se ficou claro, mas o Êxodo Urbano trouxe a Martineca do Rio gente de toda a Europa e parte do Norte de África. Franz Hubbard era um alemão de 36 anos que morreu quando fazia o pequeno-almoço para os seus namorados, Ingrid e Klaus, na manhã da despedida. Hoje, portanto. O processo de selecção dos destinos dos 29 aqui à espera é coisa que ainda dos escapa, mas lembro-me de algumas questões do formulário que preenchi há mês e meio: “Alguma vez esteve em contacto com uma intituição de crédito?”; “Compromete-se a não poluir a sua cidade de destino?”; “Sofreu de ansiedade e/ou depressão nos últimos 36 meses?”; “Por que razão se absteve no referendo planetário sobre felicidade e perspectivas de vida?”. Numa outra parte, elencavam (palavra que aprendi com um grupo de cinco consultores financeiros ingleses em Martineca do Rio) os destinos possíveis nesta primeira fase do segundo Êxodo Rural, 400 cidades de quatro continentes com menos de 10 habitantes. Entre elas, Lisboa, Tóquio e Bogotá, estas entre as minhas cinco últimas escolhas, juntamente com Paris e Nova Iorque. Não quero pensar demasiado na cidade que tenho como primeira escolha, porque não acredito que me seja atribuída.

Conto 18 passos e páro. Quando, à minha frente, vi o engenheiro informático ser colocado em Amsterdão, pensei em ficar, senti o corpo transformado num formigueiro único e um calor no couro cabeludo. Eu não iria, agora com toda a certeza, para o meu destino preferido. Nessa altura, apesar de tremer e de não ter qualquer ansiolítico, tomei a decisão difícil de seguir em frente. Um homem sem expressão entrega-me um envelope e aponta-me uma entrada, em tudo semelhante às que conheci como “mangas” nos aeroportos. Apago o último charro à pressa e abro o envelope. Cidade: Lisboa. Habitação: a definir. Profissão: a definir. Lisboa estava, pelos vistos, na mesma, para minha desgraça. Ao olhar para trás, fixo os olhos na frase-slogan da campanha: “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”. Estou muito mais calmo. O arrependimento já teve tempo para instalar-se. Agora só falto eu.

Pedro Gonçalves
Janeiro 2005

Autárquicas 2005 - a Alternativa

Fáatima Felgueiras

Depois de ver a repetição, na :2, do anunciado último debate televisivo entre os cinco candidatos a Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, senti-me uma pessoa mais decidida. Estava meio indeciso. Agora sei que vou ganhar estrondosamente. Vou, mais uma vez, fazer parte desse temido núcleo chamado abstenção.

Sob pena de ser acusado de incitar à abstenção, não digo o que deve o cidadão ajuizado fazer. Deixo apenas o alinhamento de uma compilação a que poderia dar-se o nome "Autárquicas 2005 - a Alternativa" e que pode acompanhar o eventual abstencionista no carro, no iPod, no computador, no diabo a quatro. É dia 15, mas já vamos tão adiantados na pornografia autárquica que mais vale ir preparando o espírito. Dezoito distritos, 18 canções. O critério é tão idiota que não tem discussão.

1. The Clash: "London's Burning"
2. Floyd Lloyd: "Smokey Amsterdam"
3. Duke Ellington: "Paris Blues"
4. Mano Negra: "Indios de Barcelona"
5. Leonard Cohen: "First We Take Manhattan"
6. ZZ Top: "Viva Las Vegas"
7. Táxi: "Cairo"
8. Bouzouki Ensemble: "White Rose of Athens"
9. Toots & The Maytals: "Funky Kingston"
10. The Pogues: "Dirty Old Town"
11. Beastie Boys: "No Sleep 'Til Brooklyn"
12. Hector Zazou: "Kinshasa"
13. Capleton: "Baghdad"
14. Caetano Veloso: "Menino do Rio"
15. Mudhoney: "When in Rome"
16. The Ramones: "Havana Affair"
17. Status Quo: "Rockin' All Over the World"
18. Franz Ferdinand: "This Fire"

Não parece mal...

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

04 outubro 2005

I'm bored, Mr Henriques. What's next?

Sean Paul

Para muitos apreciadores da música jamaicana, a forma corrente do género conhecido como dancehall é uma espécie de ovelha negra num rebanho resplandescente de tanta outra coisa nova com origem semelhante. Na realidade, é mesmo. É o lado pornográfico de uma moeda com milhentas faces. E aí é que está: nada a opor à existência de um lado, digamos, mais pornográfico.

Naturalmente, gente como Sir Coxsone Dodd dá hoje voltas no túmulo quando se compara este dancehall com aquele que viu nascer décadas antes. Mas o mesmo acontece com o R&B, por exemplo, aquela coisa vagamente pegajosa que aproveitou a designação de um género que em pouco se lhe assemelhava. Adiante.

Eu gosto de Sean Paul. Aliás, o seu segundo álbum, "Dutty Rock", consumiu-me horas de cavidade auditiva. Sean Paul é o jamaicano que hoje faz sonhar milhares de outros jamaicanos. Os Estados Unidos ildolatram-no, a Europa também já o conhece bem, o Japão não conta porque gosta de tudo. E Sean Paul sabe como fazê-lo, usando o "american way" de exibir-se, mostrando as raízes numa ou noutra entrevista, como a que em tempos tive o prazer de fazer-lhe.

Só que Sean Paul, dono daquela deliciosa voz nasalada capaz das melodias mais irresistíveis mesmo que ao vivo seja quase tão perceptível quanto uma formiga numa carruagem de metro de Tóquio, leva no novíssimo "The Trinity" o seu conceito até ao limite. Depois de "The Trinity", cujo título não deixa de fazer pensar que aqui pode acabar uma trilogia ("Stage One" / "Dutty Rock" / "The Trinity"), Sean Paul arrisca seriamente a não ter para onde ir.

O problema de "The Trinity" resume-se facilmente: é um disco muito mais plano do que "Dutty Rock", aparentemente mais próximo do que o "metrossexual" de cartilha street Pharrell Williams costuma fazer a quem com ele se mete. Sobra-lhe produção, não se duvide, faltando-lhe depois uma alma vendida ao Diabo, como parecia haver antes. De outra forma, dir-se-ia que Sean Paul se arrisca em "The Trinity" ao mesmo que aconteceu a Johnny Knoxville na transição de "Jackass" para Hollywood via "The Dukes of Hazzard". A velha teoria de dar às pessoas o que elas querem?

Tive o prazer de ouvir "The Trinity" antes de ele ser editado, por coincindência no meu dia de anos, e deste então tenho voltado frequentemente a ele. Porque Sean Paul continua a agradar-me sobremaneira. Não tendo virado completamente os ponteiros à bússola, agrada-me, claro. Mas houve tempos em que cheguei a pensar haver neste cidadão qualquer coisa de musicalmente especial. Ter-me-ei enganado, possivelmente.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

03 outubro 2005

Frankenreiter e a "musica jornalistica"

Donavon Frankenreiter

Hoje, num anúncio radiofónico transmitido na Radar, dizia-se a propósito do regresso em breve de Donavon Frankenreiter a Portugal qualquer coisa sobre "o espírito da música surf". Os rótulos são a coisa que são, nunca agradam especialmente, mas é o que muitas vezes temos à mão para tentar descrever o que toma conta dos ouvidos. E aí, uma coisa que me incomoda é a falta de rigor. Mesmo na publicidade, que muitas vezes despreza esse rigor.

Donavon Frankenreiter faz surf. Além disso, toca guitarra e faz umas canções. É um protegido de Jack Johnson, ou assim é apresentado amiúde. Jack Johnson é, por si só, também ele um fenómeno do Entroncamento quando se associa a pessoa a algo que tenha a ver com a chamada música surf. No máximo, encaixêmo-los a ambos naquilo a que em tempos recentes se chamou de cantautores. Normalmente são gajos americanos e têm o dom de escrever e cantar as suas próprias canções. Uma grande coisa, portanto.

Qualquer pesquisa, por muito pouco cuidada que seja, remeterá o mortal para um universo totalmente distinto deste quando se fala de música surf. Remeterá, forçosamente, para um Dick Dale, de quem pode dizer-se ter sido o difusor da guitarra que em boa parte marca a dita música surf, que vai além de uns Beach Boys (dos quais apenas um fazia surf) ou de uma dupla concorrente, Jan & Dean. Dick Dale, é esse o nome e é essa a música surf. É isso que está no propalado "Misirlou", que Tarantino ajudou a (re)popularizar.

Se já se passou a imagem de que Gentleman é um príncipe no reggae, que pelo menos não se veja Donavon Frankenreiter como um embaixador do "espírito da música surf". Só por uma questão de rigor. Ou deveremos chamar "música jornalística" a "Foram Cardos Foram Prosas", que Miguel Esteves Cardoso em tempos escreveu e que Manuela Moura Guedes posteriormente gravou?

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

O tubo de escape

Fanfare Ciocarlia

A teoria não é de minha autoria, mas não sei de quem é. Li-a algures uma vez, numa entrevista ou coisa que o valha. Para mim, fez todo o sentido ver dizer que, para que uma geração urbana possa ter uma qualidade de vida razoável no espaço que ocupa, é forçoso que uma outra, a anterior, passe pelas maiores dificuldades na relação com o que a envolve, concretamente a cidade. A cidade de Lisboa parece-me diariamente mais insuportável, voraz na forma como consome aqueles que hoje andam, digamos, entre os 25/30 e os 35/40 anos.

Por isso, e pelo facto de também em matéria puramente ideológica muito se sentir que o esforço intelectual não compensa, há neste momento uma geração, se se quiser aquela que acima se identifica, a procurar aquilo que é usual chamar-se o escapismo. Não é necessário falar de drogas, embora também se possa entrar por aí, mas apenas de cultura e espiritualidade (seja lá o que isso fôr, tantas as definições com que a palavra se relaciona).

Há pouco chegado do concerto dos romenos Fanfare Ciocarlia no Fórum Lisboa, na cidade com o mesmo nome, a ligação entre aquele festim delirante com os factos descritos nos parágrafos anteriores tornou-se estranhamente nítida. Ali estavam, eufóricas e irrequietas, centenas de pessoas que em duas horas mantiveram um sorriso no rosto pelo contacto com um extracto cultural de algo que, à partida, não lhes diz qualquer tipo de respeito. Boa parte dessas pessoas pertence à tal geração, incluídos aí os militantes da atitude conhecida como freak.

O espectáculo, que acabou já no bar e a caminho dos camarins do grupo no Fórum Lisboa, incluiu tudo o que de bom pode advir, por exemplo, de um jantar bem regado. Pode um dos metais soar mais estridente, pode um elemento insistir com o outro para que sole um bocadito, pode um cantor pigarrear para limpar a voz de microfone em riste, pode tudo aquilo parecer um circo que qualquer um gostaria de ter num casamento ou numa festa de amigos. Mas entra tudo em nós, chamados ocidentais evoluídos, como faca em manteiga no Verão. Por razões que acima refiro, é tão longínquo que chega a parecer nosso.

E tudo isto para dizer que, por exemplo, a chamada música do mundo é um dos exemplos primeiros dessa urgência de escapismo por quem hoje se sente liderado por conservadores estáticos e imutáveis. Como é a cultura em geral. Como são as viagens cada vez mais "exóticas". Como é a negação de uma religiosidade morta sem saber que o está e a procura de outras que estão tão longe como, por exemplo, a Índia ou a China. Como o é, por exemplo, esse flagelo chamado "literatura de auto-ajuda".

A música, por muito pouco que connosco se relacione culturalmente, tende de facto a ser universal. A fazer-nos felizes mesmo quando não nasce dentro de nós. Mesmo que seja apenas um apoio temporário para enfrentar a luta em que nos meteram e em que nos metemos.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.