23 junho 2006

Jahlom!

Matisyahu

Matisyahu
Coliseu dos Recreios, Lisboa
22 de Junho

Chegou a altura de defender afincadamente a ideia de que a cultura jamaicana deve ser objecto de estudo obrigatório nas escolas portuguesas, lá para o primeiro ciclo, ou como agora lhe chamam. Continuar a pactuar com a ideia de que o reggae (a forma mais simples de referência à música da ilha de onde saiu Bob Marley) é coisa recente oriunda de estúdios em Berlim ou Long Beach começa a ser verdadeiramente dramático. Absurdo, até, para não dizer absolutamente intolerável. Se é certo que a música se começa a assimilar a partir de um qualquer ponto e que isso é sempre positivo, não é menos certo que desfrutar das delícias rítmicas e melódicas com origem na Jamaica como uma qualquer patetice dos D'zrt é praticamente um caso de polícia.

Isto para chegar à noite de quinta-feira, quando a personagem Matisyahu levou ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, muito, mas muito mais gente do que se esperaria e certamente muito mais gente do que sucederia na era pré-Gentleman. Afirmar que a composição do Coliseu era feita com uns 80 por cento daquela mole a que alguns gostamos de chamar de betos radicais & suas partenaires não constitui exagero algum. Até aí tudo muito bem, é simpático, é colorido, é, como se diz noutros espaços, gente bonita. O problema, para quem vive estas coisas da música com intensidade superior aos restantes mortais, é a ignorância, a displicência com que tradições se tornam descartáveis, tão duradouras quanto a moca de um charro.

Matisyahu, talvez seja bom esclarecer, está a anos luz de ser um qualquer estandarte jamaicano. Não só porque não tem rigorosamente nada que ver com o país mas porque, e isso é que é mais importante, a sua música se aproxima daquela atmosfera tão depressa como se afasta para tiques próprios do mais formatado rock de pacotilha. É uma chatice, de facto, mas nestas coisas sou vagamente fundamentalista. É por isso que, num concerto desta natureza, um interminável e por vezes atabalhoado solo de bateria é tão imbecil quanto um riff de guitarra armado ao pingarelho. E não deixa de ser curioso que o único momento em que se ouviram apupos ao serão foi durante um instrumental fiel à mais digna tradição do dub, género superior imortalizado por gente como Lee "Scratch" Perry ou King Tubby. Se isto é apreciar a cultura jamaicana, então algo me escapa.

Mas Matisyahu, o artista, não é nada mau. É certo que a predilecção religiosa por momentos de semi-liturgia soa aos nossos ouvidos como sabe ao nosso palato uma sardinha com chantilly, mas a forma como afincadamente aplica a sua voz-reencarnação-de-Brad-Nowell-dos-Sublime sobre uma base competente feita por quem tem escola da coisa é tudo menos desprezível. E chamar, por exemplo, SP & Wilson para colorir um beatbox já de si interessante não deixa de ser estética e culturalmente simpático. Se, como aconteceu, conseguir uma plateia abstrair-se de uma mensagem global sem grande sentido prático, então a coisa chega a ser entusiasmante. Como foi.

Não havia muito para mostrar à populaça, apenas dois álbuns, Shake Off the Dust Arise e Youth. As técnicas próprias das jam sessions trataram do resto, enquanto não soavam os êxitos criados na rádio e na TV, como o trepidante "King Without a Crown", "Chop 'Em Down" ou "Heights", que saca o proverbial início ao clássico "No No No". Com odores fumarentos diversos no ar, rapaziada em tronco nu e jovens moças de camisolitas de alças, a coisa fez-se sem dificuldade. E ainda houve tempo para o número da bandeira portuguesa, símbolo do fenómeno futebolístico como propulsor de orgulho num país da treta. Bem sei que parece aqui existir azedume e ironia aos magotes, mas não tanto. Foi, efectivamente, uma manifestação de entretenimento bem executada.

Como bem executada foi a primeira parte do espectáculo, não anunciada pela organização. Apesar de continuar até esta altura sem saber de que grupo se tratava, foi recompensador assistir a um colectivo português que, militando entre o ska e o reggae, não se entrega em exclusivo aos clichés do costume, os mesmos que fazem com que o produto português nesta matéria seja normalmente desprezível.

Para fechar o círculo, volto a dizer que todo este universo tem que ser aprendido. Com exame de admissão à entrada dos espectáculos. Caso contrário, a ignorância que apontamos aos norte-americanos por não saberem onde fica metade dos países do mundo é em tudo semelhante àquela de não saber que raio de música é esta que o século XXI parece atirar para a linha da frente do sucesso comercial. Haja esperança. Ao intervalo, quanto tocava música ambiente, muitas vozes foram ouvidas a entoar a frase "Out in the street they call it murder", que Damian Marley incluiu no seu propalado "Welcome to Jamrock". Damian Marley, esclareça-se, está muito mais próximo da verdade do que Matisyahu.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

3 comentários:

  1. Foda-se, este gajo escreve bem pra caralho...

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  2. Vindo de si, realeza, esse elogio proporciona-me anafado contentamento.

    Fique V. Exa. muito bem.

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  3. heheheeheh
    ou nao seria o gajo judeu. mas ate q é divertido. é pá, alguem há de vir a reparar no que realmente o atraiu no matyshiahu (ou como é que é).

    pina

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