31 julho 2006
1 Pouco Mouco@Mondo Bizarre #26
A contribuição do pequenito para a mais recente edição da Mondo Bizarre segue em baixo.
THE LEGENDARY TIGER MAN
MULTIMÉDIA DO IT YOURSELF
O mais vivo dos artistas portugueses vivos deu este ano à estampa o álbum Masquerade. Sob a designação The Legendary Tiger Man, Paulo Furtado é cada vez menos um parasita da música, criando e sorvendo inspiração em todas as artes.
O ideal, digo eu, seria encontrar-me com Paulo Furtado num motel da Route 66, a lendária estrada que liga as costas dos Estados Unidos. Não só porque a sua música para aí me remete mas também porque é lá que o próprio vai estar dentro de pouco tempo a filmar um documentário em Super 8. Mas não. É numa tarde de Abril num hotel do centro de Lisboa que nos encontramos, como normalmente só acontece com gente “lá de fora”.
Apesar de ter como pretexto o recente Masquerade, mais de uma hora de entrevista com Paulo Furtado revela nesta altura um artista pródigo em ideias, intenções e necessidades. A Paulo Furtado já não interessa parecer um discípulo do espírito punk rock. Interessa-lhe todo a criação visual que ilustra os nossos dias, interessa-lhe saber como são os criadores que o inspiram. Em discurso directo, o homem sem o qual a música feita em Portugal seria um tédio.
Começo por uma pergunta mais genérica e não apenas centrada no álbum Masquerade. Algo que me interessa particularmente na personagem The Legendary Tiger Man é uma aparente contradição que acaba por parecer uma complementaridade natural: juntas ao conceito da “one man band” uma componente visual fortíssima, nomeadamente através de vídeo e fotografia. Sentes, de facto, essa necessidade de mostrar mais do que a música? De onde vem essa necessidade?
Acho que não existe uma contradição, mas a preocupação e a vontade de que o projecto seja mais do que música. E cada vez mais está a evoluir nesse sentido. Por exemplo, no livro anterior, In Cold Blood, já houve uma exposição de fotografia autónoma, que ganhou vida própria, e neste disco também há uma exposição de fotografias que tem vida própria e vai onde quer. Todas as curtas-metragens têm também vida própria e estão espalhadas por festivais a concorrer aos mais diversos níveis. A questão da imagem, e mesmo o suporte da imagem, acaba por ser toda feita em Super 8. Acho que a relação que há entre o Super 8 e o cinema é semelhante à relação entre aquilo que eu faço e a música em geral. Portanto acaba por ser tudo bastante directo, bastante simples. Não acho que as coisas tenham que ser pobres. No álbum Naked Blues, por exemplo, o disco foi gravado num pequeno estúdio fraco, o vídeo foi rodado com dois projectores e o primeiro partiu-se antes de começarmos a filmar. Tudo isso acaba por ter que despoletar em ti uma maior criatividade e capacidade de superar obstáculos. Nesse aspecto, isto acaba por ter um pouco o espírito “do it yourself”. É, se calhar, essa a única ligação que tenho ao punk rock: quando não estiver lá ninguém para empurrar o projecto estarei sempre eu.
Não é a primeira vez que te faço esta pergunta, mas é seguramente a primeira vez que a faço para a Mondo Bizarre. Sentes que Portugal é um país culturalmente interessante, e não quero dizer diminuído, para assimilar o universo criado pelo Legendary Tiger Man?
Acho que temos uma série de handicaps que não têm directamente a ver com os artistas propriamente ditos. Há é uma bolha de infraestruturas que não existe, de apoios que não existem, de talento que em última análise não é reconhecido nem apoiado. Mas acho que, se calhar, apareceram nos últimos 10 anos os projectos mais interessantes de sempre na música portuguesa.
Mas não existe uma ligação cultural natural entre a tradição portuguesa e aquilo que fazes. Assimilamos facilmente aquilo que fazes ou continuas a ser, para muitos, uma espécie de freak show?
Sem ter especificamente a ver com Portugal, para muitas pessoas hei-de ser sempre um freak show. Para outras sou mais um projecto de música que poderá ou não agradar. Mas acho que há uma belíssima receptividade, neste momento. Só tive recepções menos boas na primeira digressão que fiz. Mas muitas vezes eu sinto-me mais estranho em relação do que o público em relação a mim. Às vezes olho para o público e parece que estou num concerto de punk rock há 15 ou 20 anos. Isso é estranho. E acho que se calhar só daqui a três ou quatro anos vamos ter uma verdadeira revolução do rock em Portugal. Se formos a ver as coisas ao longo do tempo, nunca houve um mega-público ou um mega-movimento à volta do rock em Portugal. Esse tempo ainda não aconteceu, só um pequeno momento há 10 ou 15 anos que não teve seguimento.
Mas esse movimento começa a fazer-se notar, como sempre fora do circuito da grande indústria.
É natural que assim seja. Há muitas bandas que estão a começar e que, por exemplo, me vêm perguntar que manager devem procurar. Isso é um absurdo. Acho que há timings para tudo e, em última análise, as bandas têm que crescer por si próprias e apoiadas no seu trabalho. Tudo o resto que possa aparecer tem que ser suportado pelo trabalho da banda.
Sentes-te bem nesse papel de conselheiro?
Não. As coisas que fiz na minha vida estão certas para mim mas não estarão para muitas outras pessoas. Partilho o que sei com muito boa vontade, mas temo sempre que o que para mim é verdade possa ser falso para outra pessoa, outra carreira, outro tipo de música. No fundo, o derradeiro conselho é que não existe nenhuma fórmula nem método exactos.
Entre essas pessoas que te abordam, o que é que te tem chamado a atenção musicalmente?
Isto pode soar muito mal, mas não me chegou nos últimos tempos nada que tenha achado muito interessante. Há coisas a que reconheço valor, mas sou uma pessoa que tem uma ligação à música muito perto do coração. Dentro do seu patamar, os Vicious Five são das coisas mais interessantes que apareceram, que estão a fazer as coisas de um modo adequado sem perguntar nada a ninguém. Saíram daquele pequeno clube underground lisboeta, daquele underground fechado e quase elitista que funciona como um tampão para que o rock possa crescer.
Falando especificamente de Masquerade, um dos elementos que me chamou desde logo a atenção ao ler os créditos do álbum, e não através da sua música, foi o facto de a produção ser assinada pelo Mário Barreiros. Isso parece, pelo menos à priori, ilustrar uma vontade de sofisticação que vem do estatuto do Mário e que será eventualmente para quem te segue uma aparente negação daquele lado propositadamente cru da música do Legendary Tiger Man. Obviamente, o que te pergunto é qual a tua visão sobre essa escolha.
O que eu quis foi a potenciação over-the-top de tudo o que ele faz. Foi, assumidamente, tentar chegar ao maior power, ao melhor grave… Já fiz tantos anos discos lo-fi, como muitas coisas ainda faço, que a certa altura senti espaço para uma parte hi-fi, como já havia uma parte hi-fi nos WrayGunn. Acho que tanto o Mário como o Nelson Carvalho, em quem tinha também pensado mas com quem não foi possível trabalhar neste disco, seriam as pessoas mais indicadas para potenciar a música que queria gravar neste álbum. O Mário foi pura e simplesmente isso, não houve embelezamentos desnecessários. As pessoas têm muitas vezes, erradamente, a ideia de que o Mário vai mexer e adocicar as coisas, mas ele é acima de tudo um excelente produtor que chega a diversos universos e tem variadíssimas abordagens para a produção. Num projecto como o meu, e ele foi dos mais acérrimos defensores disso, não fazia sentido grandes overdubs ou grandes embelezamentos. As coisas ou funcionavam ou não.
Inevitavelmente, falamos também de convidados. Começando pelo Dead Combo, que participa em “Let Me Give it to You”, mesmo encaixando-se eles como uma luva na tua música, o que é que procuravas exactamente quando os abordaste para aquela lenta viagem pelas guitarras do imaginário western?
Foi uma coisa instantânea. No momento em que acabei a música liguei ao Tó (Trips, guitarrista do Dead Combo) a dizer-lhe que precisava deles para passar aquele tema para um outro patamar. Achei que era a cara deles. Senti desde sempre naquela música uma vibração que me remetia logo para o Dead Combo. Senti mesmo que o que ali faltava era a ambiência deles, que a coisa podia ir muito mais longe com uma segunda guitarra, que podia ganhar uma paisagem Sonora próxima da dos Dead Combo. A música deles é para mim bastante física, apesar de abstracta em alguns pontos. Consigo perfeitamente imaginar os Dead Combo no Ribatejo. É o deserto português, que tem tantas influências de Portugal como de todo o lado. Quando agora se fala de novo fado e dessas coisas, se calhar é o projecto que consegue ao mesmo tempo ser cosmopolita e estar com os pés na terra.
Depois, claro, falemos também de Nelassassin, que com o João Doce te acompanha em “Say Hey Hey”. A experiência com DJs não é inédita para ti, como sabe quem conhece os Wray Gunn, mas qual foi a motivação para acorrer àquele que é reconhecido como o melhor DJ de hip hop e turtablist português? Porque é que a música não estava completa sem o seu scratch?
O Nelassassin, em primeiro lugar, é para mim o scratcher mais rock’n’roll do hip hop português, até pelo modo como ele está em palco. Tenho uma empatia especial com ele. O que me levou a convidá-lo foi o facto de sentir o “Say Hey Hey” como uma música de hip hop, para ser sincero. Talvez pela voz e pelo que está na minha cabeça em termos de groove e que até pode nem estar tocado. Está tão próximo do hip hop como está dos blues, e nesse sentido também foi instantâneo sentir a necessidade de um scratch. Mesmo que eu não o transmita do modo mais óbvio, o hip hop faz parte dos meus universos. Acho que o que é grave é quando as pessoas se transportam para guetos culturais de onde não saem, se fecham em normas, comportamentos e padrões. Isso acaba por ser a morte dos géneros.
O teu fascínio por um universo musical americano ligado aos blues e ao rock’n’roll não é naturalmente novidade para ninguém, mas é curioso como as versões que escolhes fazer são de canções que parecem poder ser tuas desde o princípio, como acontece neste disco em “Route 66” e “Blue Moon Baby”. Conhecendo-te, nem sequer falo no medo de sair para fora de pé, mas também não sinto essas versões como corriqueiras homenagens. Qual é então o critério de quem as faz?
Em Legendary Tiger Man é o critério mais empírico do mundo, é eu estar sempre a tocar versoes diferentes e ir tocando-as nos concertos. Depois sinto que posso fazer algo de interessante com algumas delas, daí gravá-las, mas para mim é um exercício de experimentação e aprendizagem. Não escolhi essas duas músicas por serem um marco na História dos blues ou do rock. Houve uma altura em que os músicos tocavam alegremente as músicas uns dos outros sem grande preocupação, e em Legendary Tiger Man faço isso com uma despreocupação quase displicente ou até com falta de respeito para com os originais. Tendo o maior respeito pelos autores, quando faço uma versão não tenho qualquer limite ou pudor em alterar a música como achar conveniente. Sabendo que isso vai chatear pessoas, que algumas se indignam.
Isso acontece, de facto?
Meu caro amigo: há sempre pessoas a dizer mal de tudo. Eu, por outro lado, acho que se deve tocar em tudo, sem limites, sem fronteiras. Se formos a ver, nunca pedi autorização para fazer versões. Faço os discos e registo-os com as versões, sendo pagos os direitos a quem os detenha.
Em relação a Masquerade, começámos a conversa pelo fim. Indo directamente ao início, depois de Naked Blues, Fuck Christmas I Got the Blues e In Cold Blood, de que ponto da tua massa cinzenta começou o novo álbum? Mesmo que as pessoas possam não ter a noção disso, sentes habitualmente necessidade de romper conceptualmente com o que fizeste antes de cada novo disco ou a coisa processa-se de outra forma?
O ponto de partida acaba por ser sempre a fase da composição geral das canções, nunca penso que o meu próximo disco deve ser mais isto ou menos aquilo. É uma evolução natural, acho que nunca houve uma ruptura de há 15 anos para cá. Isto até é um processo bastante idiota, porque acabo por ir atrás das canções, e não as canções atrás de mim. Há alterações que faço no meu set, como a divisão de amplificadores – guitarra para um lado, baixo para o outro… Por exemplo, uma canção como “The Whole World’s Got The Eyes On You” pedia um baixo constante e uma guitarra saltitante. As direcções que tomo acabam por ser motivadas pela necessidade de as canções chegarem mais longe. Neste disco, por exemplo, tenho um tema com cinco anos, “Bad Luck Rhythm’N’Blues Machine”. É das primeiras músicas que fiz e só agora, com a introdução de uma parte electrónica, senti que tinha algum interesse em ser gravado. Já a versão gravada de “Masquerade” foi totalmente feita já no estúdio. Este é, portanto, provavelmente um disco que resume mais ou menos o meu trajecto nos últimos anos, tanto a nível musical como da fotografia e das curtas-metragens. Pode ser o culminar de uma fase. Não sei se para a frente a coisa mudará muito, acho que não.
Reportando-me apenas ao lado visual de Masquerade, de uma capa que parece revelar algum glamour romântico, apercebêmo-nos depois que acabas como que numa morgue a executar aquilo que parece uma autópsia. Sei que pedir explicações sobre estas opções criativas não é normalmente de bom tom, mas é isso mesmo que te faço neste momento. O que é que realmente se passa nas imagens que acompanham o disco?
As imagens são baseadas numa série de filmes, ou de cenas de filmes, mais ou menos importantes. É uma espécie de mistura entre “Frankenstein”, “Psycho” e “Freaks”, é a história de um homem que não quer separar-se do amor da sua vida. Ou que quer criar o amor da sua vida, conforme as interpretações. No fundo, tem sempre várias mensagens intrínsecas: uma pode ser que as coisas não são sempre aquilo que parecem, como no tema fantástico do Bo Diddley, “You Can’t Judge the Book by Its Cover”. E estão lá elementos dos filmes de terror antigos, a maior parte deles com crítica social e mensagem subliminar, em que o monstro acabava por ser a única personagem com alguma honestidade e humanismo. Gosto de brincar e subverter os temas, como poder haver quem olhe para a capa e pense que se trata de um disco de tangos. O que quero salientar é que a realidade é sempre assustadora do que a ficção. Quando andava a fazer alguma pesquisa sobre taxidermia humana, encontrei uma empresa nos Estados Unidos que pode enbalsamar por um preço bastante razoável o teu ente querido falecido. Para poderes estar sempre com ele, para poderem fazer almofadas com a sua pele e outras coisas extremamente bizarras. É uma empresa que se chama Forever Yours. Portanto gosto de brincar com os fantasmas.
Não sendo esta uma revista do mundo dito cor-de-rosa, não te vou falar do teu casamento, mas daquilo que vais fazer em seguida, uma lua-de-mel on the road pelos Estados Unidos acompanhado por uma câmara Super 8. Do ponto de vista artístico o que vais efectivamente fazer nessa viagem e com que resultado gostavas de regressar?
O meu objectivo é fazer um trans am, ir encontrando geograficamente na América alguns artistas dos mais diferentes meios e fazer um retrato de uma “outra” América, invisível aos olhos de muita gente. Há uma série de projectos, tanto a nível musical como de fotografia e cinema que gostaria de conhecer e perceber melhor. No fundo, trata-se de um documentário que não tem nada a ver com lua-de-mel mas com um trabalho de descoberta. É algo que pressupõe algum planeamento mas há também uma quota de incerteza, nomeadamente porque alguns artistas já estão falecidos. Nestes casos, vai ser tentar chegar aos locais e falar com quem esteve directamente com esses artistas. Mas fazer os Estados Unidos de costa a costa de carro envolve sempre a imprevisibilidade que se cruza contigo.
Levas a guitarra?
Não, de modo algum. Vou pôr de parte o lado musical temporariamente.
Pedro Gonçalves
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ESG
“Oh my god, that’s the funky shit!”
Há mais de uma vintena de anos, as ESG frequentavam o nova-iorquino Roxy, entre gente como David Bowie e Andy Warhol. Aí viam o hip hop afirmar-se como cultura consolidada, mas a verdade é que foi aquele parciomonioso funk pós-punk que lhes deu fama (relativa). A história continua em 2006.
“Oh my god, that’s the funky shit!”. O grito, celebrizado pelos Prodigy no álbum The Fat of the Land, agarra-se que nem lapa ao novo álbum das nova-iorquinas ESG, como sempre se agarrou desde que Renee Scroggins arregaçou as mangas para, com os esparsos meios de que dispunha, transmitir uma visão paradoxalmente despida e carregada de groove daquilo que era a criação musical nas franjas do então emergente hip hop, agigantado por gente como Afrika Bambataa e a sua Zulu Nation, mais as crews de b-boys e os writers ligados ao graffiti aceites em galerias como qualquer artista plástico. Nesse contexto, em que também a estética e o ideário pós-punk procuravam saídas nos mais diversos domínios da criação artística, as ESG surgem como uma forma descarnada de combinar, essencialmente, batidas obesas com linhas de baixo proeminentes a que se juntavam, com a citada parcimónia, melodias de guitarra e apontamentos vocais relativamente simples, o que com naturalidade não era nada desprezível no circuito dos clubes dedicados à dança. Oriundas do Sul do Bronx, as ESG eram, para seu bem, muito mais do que um produto do Sul do Bronx na transição da década de 80 para a década de 90 do século XX.
O universo da música popular tem depois, como se sabe, casos que, não sendo inexplicáveis, carecem de atenta análise para serem compreendidos. As ESG (Enterprising Scroggins Girls) deram os seus primeiros registos à estampa no dealbar dos anos 80, marcando desde logo os primeiros pontos na denominada música de dança, universo em que inclusivamente contaram com o já mítico apoio de Martin Hannett. Eram então as irmãs Scroggins e Leroy Glover, encarregue do baixo. Escassos anos depois dessas primeiras aventuras em disco, desmembraram-se, sendo o seu legado aproveitado até ao seu reaparecimento, em 1991, por nomes diversos ligados ao hip hop, dos Wu-Tang Clan aos Beastie Boys. O mistério ESG reside, precisamente, no facto, de não protagonizarem desde então um regresso excrementício, como foi por exemplo o de uns Kraftwerk. Fiéis aos cânones originais, mostraram-se relevantes quando o mundo ainda não vivia à sombra do chamado electro-punk nova-iorquino da década presente.
Arriscaram em voltar a gravar originais, que não funcionaram apenas como delícias retro. Foram sempre mais do que isso, foram sempre um apelo naturalíssimo à reacção sobretudo física dentro de um universo aparentemente limitado. Em 2006, as ESG editam Keep On Moving e, surpresa das surpresas, volta a estar lá tudo com uma relevância sobrenatural. De experiências lânguidas downtempo (“Purely Physical”) à soul quebradiça (“I’d Do It For You”), do funk mais arredondado (“Keep On Moving”) a um R&B de fazer inveja (“Ex”), Keep On Moving mais não faz do que sublinhar a necessidade que a humanidade cada vez mais sente no acesso ao congelamento de corpos e ideias para utilização futura. As ESG, com toda a sua limitada artilharia, não são de tempo algum, caramba. E isso é que impressiona. Com toda a certeza, ao passearem nas ruas de uma Nova-Iorque armada ao pingarelho, são as manas Scroggins quem hoje continua a rir-se.
Pedro Gonçalves
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GNARLS BARKLEY
O Rato Pariu Uma Lomba
De persona non grata para a indústria do disco a espécie de Midas do hip hop menos cintilante, Danger Mouse é um dos homens mais respeitados do universo. E o que é que os Gnarls Barkley têm que ver com isso?
Interessa recordar que toda esta história começou, em matéria de notoriedade popular, com um disco que podia ser incluído entre muitos outros da categoria dos mash ups. Corria o ano de 2004 e Danger Mouse, apesar de não ser então propriamente virgem em termos de produção musical, foi protagonista de uma das histórias que possivelmente figurará nos tomos enciclopédicos dedicados ao entretenimento deste início de século. Grey Album, o disco que disponibilizou gratuitamente na internet, mais do que ser uma elegante e cuidada salada feita a partir de White Album, dos Beatles, e de Black Album, de Jay-Z, representa ainda actualmente um dos pontos-chave do relacionamento das multinacionais dos fonogramas com os downloads. Com a EMI a colocar Danger Mouse na lista dos homens a abater (como se sabe, nos Beatles ninguém pode tocar), muitos milhares de consumidores responderam com o download “organizado”, praticamente formando uma linha de frente no combate ao corporativismo multinacional. Damon Albarn, dos Blur e Gorillaz, que por acaso também está contratualmente ligado à EMI, não foi de modas e tratou de chamar Danger Mouse para dar música às suas criações símias. Daí a gravar com MF Doom o projecto Danger Doom e agora este St. Elsewhere a mielas com o MC Cee-Lo vai coisa pouca.
E aqui voltamos ao fenómeno dos downloads. Ainda antes de ser um rebuçado que já correu a boca de metade da população mundial, o single “Crazy” instalou-se directamente no 1º lugar do top de downloads legais n o Reino Unido. O que, imagina-se, deve ter dado especial gozo a Danger Mouse. Mas se “Crazy”, descontando um refrão substancialmente irritante, para não dizer histérico, é uma bomba melódica e rítmica de fina estirpe, St. Elsewhere não é todo ele um objecto de génio. É, muito provavelmente e por via de uma aproximação a sonoridades amigas do ouvido pouco calejado, uma aventura relativamente atribulada. Se, por um lado, Danger Mouse e Cee-Lo, que tem um registo “funk soul brother” nada desprezível, dificilmente padecem da absoluta irrelevância (acontece em “St. Elsewhere”, na versão pateta de “Gone Daddy Gone”, dos Violent Femmes, “The Boogie Monster”, “Who Cares” e “Storm Coming), também é fácil constatar que uma propositada esquizofrenia estética não resulta em muito mais do que um álbum à volta de uma canção efectivamente magistral (tirando a tal questão do refrão). Produtor inspirado e amiúde gozão, Danger Mouse não deixa de infectar praticamente todos os temas com generosos pormenores de samplagem e reconstrução. Cee-Lo, por seu turno, sabe tirar partido do facto de poder ser mais do que um rapper. Alguém deveria explicar-lhes, no entanto, que o grau de exigência se situa agora no que é novo e no que é bom. Não apenas num single.
Pedro Gonçalves
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Dead Combo
Vol. II: Quando a Alma Não É Pequena (Dead & Company/SonyBMG)
Um dos riscos inerentes à criação de um espaço de intervenção aparentemente identificado e delineado é o de nunca de lá querer o conseguir sair. Na música, isso significa que quando um artista ou um grupo se situa num ponto estético confortável apesar de solitário corre o sério risco de fazer o mesmo disco vezes sem conta. Porque sabe bem, porque é o que conhece e domina melhor. Os Dead Combo, de Tó Trips e Pedro Gonçalves, poderiam muito bem ser um desses casos. Como se sabe, o primeiro volume desta viagem a dois pintava já a giz no alcatrão um universo de actuação raríssimo e delimitado pelo imaginário western, gingão e subliminarmente português para não dizer lisboeta (mesmo que falar de peremptoriamente de fado a propósito dos Dead Combo seja um uma divagação). Seria, então, o Vol. II igual ao primeiro?
Resumidamente, sim. É de facto irmão do primeiro. Só que os Dead Combo mostram, à semelhança de bandas tão díspares quanto uns Morphine, uns Stereolab ou uns Spacemen 3, no quarto que escolheram habitar os mesmos brinquedos podem ser usados em actividades lúdicas sempre novas. Quando a Alma Não É Pequena assenta, naturalmente, nos dedilhados vindos de middle of the road executados por Tró Trips (que com o fim dos Lulu Blind adquiriu alma musical bem mais profunda) e no registo grave, sobretudo nas cordas, de Pedro Gonçalves, que se encarrega de oferecer o peso do contrabaixo. Mas não é, para bem do acto de criar, só isso.
Em Quando a Alma Não É Pequena pode, com naturalidade, saltar à vista que qualquer novidade só poderá vir das mãos de convidados como Paulo Furtado, Sérgio Nascimento ou Nuno Rafael. O que é verdade, até certo ponto. Porque o que aqui importa não é tanto quem o faz, mas como é que os adornos são feitos e colocados na música dos Dead Combo. Muito bem, diria sem pestanejar. É claro que vai continuar a falar-se de música de westerns, e a inclusão de um tema intitulado “Mr. Eastwood” parece dar o aval ao sentimento, mas nunca a coisa se esgota aí. Na realidade, é muito mais assimilar à primeira elementos com origem nos blues, no tango, num fadinho corrido ou mesmo no flamenco do que uma coboiada de John Wayne.
Os Dead Combo resolveram não se afastar muito do seu acampamento e, mesmo com área de intervenção não muito ampla, fazem intrumentais (mas não só) que mostram haver ainda o mundo inteiro para descobrir no espaço de dois metros quadrados
(8)PG
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The Streets
The Hardest Way to Make an Easy Leaving (679/Wea)
Passam sensivelmente quatro anos desde que Mike Skinner, sob o pseudónimo The Streets, editou Original Pirate Material e, com esse disco, verbalizou e musicou para uma audiência considerável um movimento criativo que se ia desenvolvendo em zonas demarcadas de Londres. Que partia de padrões próximos do hip hop, é certo, mas que abusava de um orgulho cockney na forma de relatar a vida urbana e mundana sobre ritmos estraçalhados e frequentemente gelados. Em quatro anos, do grime ao dubstep de tudo se foi passando, e os Streets assumiram-se objectivamente como o valor mais seguro na bolsa de investimentos. Chama-se sucesso comercial.
Depois de Original Pirate Material e A Grand Don’t Come For Free, Mike Skinner faz deste The Hardest Way… uma espécie de confessionário pós-reconhecimento colectivo, num composto que junta visões do exterior com reflexões sobre o “eu” e que, entre humor e clareza, tem qualquer coisa de viagem narcótica nem sempre inteligível. A verdade é que, se o desafio pode soar desinteressante, Mike Skinner não dispõe da habilidade de cair na nulidade criativa quando produz um disco. É por isso que, em sequência, temas como o irónico-jocoso “When You Wasn’t Famous” e o litúrgico/biográfico “Never Went to Church” não esbarram numa indesejável irrelevância esquizofrénica. Relativize-se o efeito novidade.
(7) PG
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Band of Horses
Everything All the Time (Sub Pop)
Um dos problemas inerentes a uma entidade musical como a dupla de Seattle denominada Band of Horses é, a juntar ao facto de milhentos criadores escolherem designações artísticas de pendor equestre, o facto de nem os próprios distinguirem, dentro de alguns anos, a sua música da de muitos dos seus pares. Auto-contemplativa até mais não, esta é uma facção que crê nunca esgotar-se o filão que faz a miscigenação entre um rock vagamente pastoril, um psicadelismo moderado e uma existência etérea decorrente de guitarras amiúde cristalinas e vozes que procuram desesperadamente uma aguda harmonia. Falar, portanto, de Neil Young com os Crazy Horse ou dos Flaming Lips é já redundante.
Se existe beleza evidente nas 10 canções que fazem os 36 minutos da estreia em formato álbum dos Band of Horses? Claro que sim. E ela resulta, precisamente, da combinação dos factores enunciados. O pior é que nunca uma canção é mais impetuosa do que a anterior ou do que a que a sucede. Gravitam num limbo de encantamento estéril que, num mundo imperfeito, correspondem à categoria daquelas que apenas fazem número.
(6) PG
Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.
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