23 abril 2006

Assim riem-se todos...

Jorge Lima Barreto

O jornal 24 Horas está, como se sabe, permanentemente na vanguarda da comunicação escrita para gente nada exigente. Como estão pasquins do género sediados no epicentro da imoralidade jornalística, as terras conhecidas como Reino Unido. Vai daí, nunca o 24 Horas deixaria passar a oportunidade de juntar uma revista colorida às numerosas que já poluem as bancas há alguns anos. Não é de hoje, mas o 24 Horas ao sábado é uma coisa especialíssima, muito pouco de jornal e tudo de revista descartável (e nem necessário é citar rubricas como as assinadas por Belas & Perigosas ou Carlos Dias da Silva).

Esta prosa tem origem no 24 Horas, mas não se lhe dedica. Vem a propósito do editorial, a que chamam "Notas Ligeiras" (que também diz muito sobre a publicação), que esta semana o director Jorge (perdão, Pedro) Tadeu escreveu para fazer um mea culpa com 20 anos de atraso em relação a uma entrevista realizada a Jorge Lima Barreto e Vítor Rua, mas sobretudo a Jorge Lima Barreto. Diz Tadeu que, ao publicar a entrevista, chamou sistematicamente "steak" (bife) e não "stick" (pau) a um instrumento novo que Vítor Rua andaria a experimentar. Desculpável, quando nos lembramos de casos como uns tais Very Light fazerem a primeira parte de um concerto dos GNR ou as "bass lines" traduzidas por "linhas de base". Ainda que não se perceba o acto de contricção de Jorge (perdão, Pedro) Tadeu (o tema de capa são as maiores broncas na televisão, talvez seja essa a ligação...), não é grave.

O que é curioso é que, a dada altura, escreve Jorge (perdão, Pedro) Tadeu: "Com Jorge Lima Barreto não se pode ter uma conversa simples e desapaixonada. O fulano é uma inteligência superior e cultiva o estatuto de provocador profissional. Virou-se para o ignorante jornalista e fuzilou-o com uma conversa enciclopédica sobre música minimal repetitiva, música mimética, música concreta, música funcional, música totalmente improvisada, música electro-acústica, eu sei lá!...". Descontado o facto de crer este vosso servente não ser possível manter com Jorge Lima Barreto uma conversa de todo, Jorge (perdão, Pedro) Tadeu não podia descrever melhor a personalidade que lhe havia tocado em sorte. A camaradagem profissional faz-me, no entanto, tirar o director do 24 Horas deste estado miserável de auto-compaixão e explicar-lhe que também Jorge Lima Barreto dá as suas "broncas". Algumas bem boas, daquelas que se mastigam com insuperável intensidade.

Há uns anos consideráveis, eu próprio fui alvo da fúria enciclopédica de Jorge Lima Barreto e também por via de um trabalho jornalístico que me mandaram fazer para o Blitz. Actuaram em Lisboa os Grandmothers of Invention, a já vetusta banda que outrora acompanhara Frank Zappa. Um espectáculo dos utentes de um lar de idosos não teria sido muito diferente, não fosse a presença do falecido Gonçalves (performer espontâneo dos Irmãos Catita), e era suporto sair dali com uma reportagem. Foi o que fiz, escrevendo no final da dita que não tinha qualquer interesse em ouvir os discos de Frank Zappa. Foi o suficiente. Jorge Lima Barreto, presente no concerto como espectador, não quis acreditar em semelhante despautério e escreveu ao então director do Blitz, Rui Monteiro, dando conta da minha imbecilidade, por outras palavras. Na missiva, entre elocubrações sem muito interesse para o cidadão comum, aprendi mesmo uma palavra: plumitivo. Cheguei a pensar ser insulto grave, até consultar o dicionário. Fazei o mesmo.

Obviamente, Jorge Lima Barreto passou a ocupar um lugar especial no meu coração, homem de figadal reacção ao facto de um jovem plumitivo não querer, e assumi-lo com arrogância, chegar sequer perto da música de Frank Zappa. Afinal, a criação e o consumo musicais são mais viscerais do que cerebrais, pelo menos vistos daqui. Isso é bom, é humano, é até contrário à mecanização das "leis do mercado". Este limbo intelectual e enciclopédico de Jorge Lima Barreto desvaneceu-se diante de mim alguns anos depois, para alegria do agora confessado Jorge (perdão, Pedro) Tadeu.

Avisado da capacidade de Barreto para escrever livros como Musa Lusa, quis a dada altura conhecer uma obra de nome B-Boy, em que, como o próprio nome indica, se traçava vagamente uma história da cultura hip hop. Numa estada no Porto, visitei a loja Valentim de Carvalho do Shopping Cidade do Porto, onde trabalhava um amigo, músico português dedicado à electrónica. Entre diversas outras coisas, perguntei-lhe pelo citado B-Boy, cujo paradeiro me foi apontado prontamente apontado. Perguntei-lhe, em tom irónico por não ter o hábito de tomar semelhante iniciativa, se um livro com uma capa tão hedionda não daria direito a desconto na caixa. A resposta foi um post-it colado na capa com uma mensagem para a menina à saída: "O portador deste livro de anedotas é jornalista. Fazer o desconto possível".

Quis saber a origem da expressão "livro de anedotas". Disse-me então o músico que ele próprio havia sido visado na obra com uma análise ao seu primeiro álbum. E que Jorge Lima Barreto havia, a esse propósito, assegurado que tinham sido usadas máquinas e instrumentos que nunca passaram pelas mãos do autor do disco. Vim, com a leitura da grotesca adulteração da História da Música ali contida, a deparar-me com preciosidades como a afirmação de que o hip hop havia nascido a partir do tecno e a atribuição do estatuto de DJ a Tricky, que todos conhecemos por ser tudo menos isso. Com o seu saber enciclopédico, reconhecido e aplaudido noutros domínios, Jorge Lima Barreto demonstrou cabalmente quais os resultados de escrever sobre aquilo de que pouco ou nada se sabe.

O que me leva também a recordar o dia em que, em entrevista a David Byrne, lhe questionei se tinha conhecimento e participação na biografia que um jornalista português estava então a escrever a seu respeito. Disse-me que não, que cria ter falado com o jornalista numa conferência de impresa, no máximo, mas que não sabia nada sobre o assunto. Publicada a entrevista, ficou o referido jornalista muito incomodado com a aparente queda da máscara. Novamente, a questão de falar do que não se sabe ou fingir saber-se mais do que o que se sabe. Por estas e outras, camarada Jorge (perdão, Pedro) Tadeu, durma descansado. As barbaridades, ou "broncas", como lhes chama, vêm de todo o lado. Um dia partilho consigo um "best of" das minhas.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

3 comentários:

  1. Caro amigo,
    Também você foi visado pelo vírus das broncas. O director do '24 Horas' chama-se Pedro Tadeu e foi, em tempos, editor do ar condicionado no também já extinto jornal 'A Capital', isto depois de um estágio no distinto 'Avante!', para o qual, suponho, tenha entrevistado Jorge Lima Barreto.
    Jorge Tadeu é outra personagem, também ela com muito "sumo", mas por ser o fundador e pastor-mor da Igreja Maná.
    Saudações

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  2. Caríssimo:

    Nem mais! Quem fala sobre broncas arrisca-se a atraí-las. É só uma de uma maravilhosa colecção.

    Obrigado pelas correcções.

    Cheers!

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  3. «Disse-me que não, que cria ter falado com o jornalista numa conferência de impresa»

    que CRIA ter falado???

    dahhhhhh

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