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Estávamos em 1996 e, como não será difícil de assimilar, um novo álbum dos Cure não era exactamente a notícia mais estimulante do mundo. O caso era, digamos assim, visto como mais um exemplo do arrastamento do grupo inglês num deserto de alegada irrelevância estética. Fui, na ocasião, destacado pelo finado Blitz-jornal para uma deslocação a Bath, a Oriente de Londres, para entrevistar o grupo a propósito do então novel Wild Mood Swings.
Naturalmente, Wild Mood Swings fez tudo menos História. Surpreendia, no máximo, pelo imaginário mariachi sugerido por "The 13th", mas não muito mais do que isso (é bem provável que tenha escrito coisa diferente em 1996, mas as oscilações de opinião constituem um dos factores mais interessantes do relacionamento do melómano com a coisa amada). O que ficou, pelo menos, na minha História foi a experiência que essa viagem significou.
Em traços pouco exaustivos, direi que a deslocação envolveu: viagens de Jaguar com motorista entre Londres e Bath; a constatação de que era eu o único jornalista europeu não avisado do adiamento de todas as entrevistas ao grupo; um jantar de última hora com a banda (Robert Smith à esquerda, a sua mulher, Mary Poole, em frente) numa sala medieval da impressionante mansão/palácio de Jane Seymour nas imediações frondosas de Bath; uma entrevista de uma hora a Robert Smith acompanhada por um magnífico cognac. Dito assim, talvez pareça coisa pouca. Foi tudo menos coisa pouca.
Alguns 10 anos mais tarde, talvez em 2005, fui com amigos ao bar LEFT, em Santos, Lisboa. Tratava-se, e ainda se trata, de projecto recente e munido daquele ideário clean que tão bem fica nas páginas da Wallpaper mas que amiúde consegue provocar genuíno desconforto nos visitantes. Mas não, o LEFT não é como aquelas sapatarias-cabeleireiro-bar-loja gourmet-bilheteira de espectáculos-loja de electromésticos-escritório de advogados-clínica veterinária onde o freguês é presenteado com um ambiente que lhe grita: "Não tens pinta para isto".
Nessa ocasião, num dia útil, o LEFT tinha pouca gente. Uma das caras era-me vagamente familiar mas, como normalmente, não fazia a mais pálida ideia de onde. Felizmente, o dono do rosto, mais expedito do que eu, acercou-se e perguntou-me se não era o Pedro Gonçalves. Que há uns anos tinha viajado para Londres sentado, no avião, ao lado de alguém que meteu conversa para falar sobre música. Fez-se luz. Lembrava-me, de facto, desse episódio em que o meu interlocutor, apaixonado pelas coisas motorizadas com duas rodas, ia fazer prospecção de material na capital inglesa. O Jorge Santos, que é de quem falo, era afinal um dos donos do LEFT.
Muita e boa conversa depois, fui desafiado e passar uns discos naquele magnífico espaço. Coisa que, até à data, fiz diversas vezes com especial prazer. Excelente ambiente, bom som, magníficas condições para quem selecciona discos. O LEFT espelha, além do tal ambiente clean de inquestionável bom gosto, o respeito e dedicação que o Jorge Santos tem face à coisa musical (juntemos a essa qualidade a sua imaculada educação). DJs (nada de estrelas) de toda a parte e bandas realmente importantes passaram pelo LEFT em menos de dois anos. Até que ontem à noite o Jorge Santos me deixou no telemóvel uma mensagem que dava conta de uma ordem de encerramento do bar (e, menos importante, o adiamento por tempo indeterminado de uma sessão de yours truly marcada para esta quarta-feira).
Com a ajuda de outro amigo, meu e do LEFT, descubro isto: "O Left Bar, recebeu no passado dia 26 de Janeiro de 2007, uma ordem de encerramento assinada pelo vice-presidente da câmara de Lisboa, Fontão de Carvalho, que foi constituído arguido, no dia 25 de Janeiro de 2007 pelo Ministério Público no processo de permuta de terrenos do Parque Mayer e da Feira Popular". Sem espinhas. Ao que parece, o problema é o proverbial excesso de decibéis emitidos. Estou nesta altura a escrever estas linhas porque gosto destas histórias que se cruzam e entrecruzam, destes reencontros que fazem pensar na existência do fado/destino. Por isso mesmo, serei um dos muitos dispostos a muito para que o LEFT não feche as portas em definitivo.
Não sou crente em formas de manifestação como abaixo-assinados, petições, "vaquinhas" e por aí adiante. Mas desta vez assinei uma petição online. O que é realmente necessário é que a importância de um espaço como o LEFT seja devidamente assimilada por quem ordenou o encerramento. Isto faz-me pensar que o LEFT, bem como a Santos Design District – Associação Empresarial do Bairro de Santos, não amaciou devidamente as mãos de uma ou outra criatura da edilidade.
Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.