30 março 2006

Get your kicks on Route 66!

The Legendary Tiger Man

The Legendary Tiger Man
Lux, Lisboa
29 de Março

Hoje, naquele período que mistura a manhã com a tarde, por razões insondáveis a SIC exibia, como dizem que faz diariamente, os comentários de três pessoas à vida privada de uma ou outra criatura cujas existências, conhecidas pelo seu absoluto vazio fora do universo do mundano, parecem ser interessantes para uma não desprezível quantidade de pessoas também sedentas de substracto que as preencha. Embaraçosamente provinciano e constrangedor, o espaço televisivo, em que se discutia com preocupante seriedade se uma tal criatura Jardim estaria ou não de amores com um tal espanhol com actividade médica, fez o signatário pensar num pedaço da noite anterior.

Foi o próprio quem me confirmou, algum tempo depois de apresentar o seu novo álbum (já lá iremos), que em Setembro se casará. Felizmente, o assunto nunca será objecto de discussão na citada confrafria de inúteis, uma vez que, além de não constituir fenómeno de relevância social absolutamente vital (como o tal caso Jardim), é acompanhado pela obsessão da criação artística. É isso, precisamente, que fascina. Quando, entre Setembro e Outubro de 2006, Paulo e Isabel andarem pela Route 66 a fazer os Estados Unidos de costa a costa em lua-de-mel, terão consigo uma câmera Super 8 que de acordo com os planos servirá para registar não apenas a convivência conjugal, mas a convivência com referências e civilizações que marcam aquele que é um dos maiores músicos portugueses realmente vivos. E, pelo que se conhece ao elemento masculino da relação, a coisa não servirá apenas para mostrar à eventual descendência em tardes de domingo, esperando-se mais um acto superior de apropriação e partilha de ideários e imaginários a que o português comum tem culturalmente dificuldade em aceder. Perdoai-me os leitores da Grazia, mas são estas genuínas demonstrações de procura criativa que me estimulam.

Paulo Furtado, que fique claro, é um belíssimo amigo, daqueles que pessoalmente se preocupa em indagar a morada para onde enviar um convite para o serão em que pela primeira vez mostra o seu novo disco, Masquerade, ao vivo. Conscientemente afastado do estanque "meio musical" que em Lisboa actualmente gravita, não conseguiria o improvisado repórter recusar um convite efectuado com respeito, amizade e, pode dizer-se, uma cumplicidade construída em anos de interacção. E ali estava eu, cinco minutos depois de começar o espectáculo, no Lux, onde há meses não colocava os membros inferiores por manifesta ponderação de prioridades e crescente repulsa pela complexidade intangível do binómio ver/ser visto. No palco não estava, na ocasião, Paulo Furtado, mas essa trepidante entidade que responde pelo nome de Legendary Tiger Man. Do lado de cá, não está apenas o amigo, mas o adepto, o associado, o "torcedor". Gozando plenamente da vantagem de não ter trabalho a cumprir no serão.

The Legendary Tiger Man, então. Não tem muito que saber: é um dos poucos projectos portugueses com alma própria, tão própria como construída a partir de umas quantas almas grandiosas que marcam a História norte-americana sobretudo no tomo dedicado aos blues. Por essa razão, principalmente por essa razão, Paulo Furtado já me ouviu mais do que uma vez afirmar sem hesitação que Portugal é, por razões culturais e outras como ginásios e programas televisivos matutinos, absolutamente incapaz de absorver e viabilizar (precisamente: pagar) qualquer coisa como a música do Lendário Homem Tigre. Nessa mesma noite, diziam-me que deviam ter estado recentemente em Coimbra todos os portugueses que apreciam os blues e que, acrescento eu, reconhecem vida para lá de BB King. Imagine-se, portanto, se não é fora deste quintal que as possibilidades de compreender uma tradição sulista norte-americana se materializam. "One man show" é coisa de circo, parece-me ouvir sempre que penso nisto.

É daí, dessa tradição e da repetida audição dos mais destemidos, enigmáticos ou praticamente invisíveis praticantes dessa combinação dos blues com o rock'n'roll que vem este engenho criativo de Paulo Furtado na versão The Legendary Tiger Man (descontando, propositadamente, nesta ocasião experiências como os Tédio Boys e os Wray Gunn). Quando chama ao palco o magnífico Dead Combo (para a interpretação de "Let Me Give It To You") e João Doce e Nelassassin (para, respectivamente, acrescentarem percussão/coro e turntablism a "Say Hey Hey"), Paulo Furtado não se transfigura numa balofa criatura de desmesurada ambição. O que ali importa é, na realidade, perpassar subtilmente a sua música com universos que a ele se adaptam e não o assustam nem se agigantam esfaimados. Ainda que, com toda a naturalidade, o maior manipulador de gira-discos em Portugal (Nelassassin) chame a si especial atenção pelo (aparentemente) inusitado diálogo do vinil com a guitarra e a voz. Nada de mais, apenas a combinação do trabalho de dois eleitos.

The Legendary Tiger Man passa por todo o novo Masquerade, o principal pretexto que ali o levou, mas regressou igualmente a Naked Blues, que o mostrou ao mundo que não dorme. Mas para Paulo Furtado um triunfo anunciado não é suficiente, servindo ainda o Lux para dar vazão ao trabalho em vídeo que ele próprio e gente como André Cepeda ou Edgar Pêra oferecem a canções que vão do eternamente atraente imaginário "middle of the road" às sinuosas histórias de amor e desamor sob néon onde se lê "Motel". Os cumprimentos ao músico, depois de cumprida a tarefa, referem-se precisamente a um composto de música e imagem que transportam diletantemente o consumidor para essas terras de ninguém que só os velhos discos e as essenciais leituras tornam acessíveis.

Mesmo que o facto já não cause estranheza, inevitável se torna dizer que, sempre que Paulo Furtado (na encarnação The Legendary Tiger Man) dá aparentes passos atrás no tempo está a quebrar recordes de salto em comprimento no espaço baptizado Portugal. Para Este (que o diga a revista francesa Rock & Folk) como para Oeste, tornando-se o Atlântico num fio de água que tão facilmente se transpõe com uma voz de poeira no ar, uma guitarra que tanto fere como acaricia, um bombo e um prato-de-choque que parecem tocar sozinhos. Bem sei que este pode ser tempo e espaço perdidos na elocubração mental em torno de qualquer coisa que não existe na vizinhança de nenhum de nós. Mas, fuck it!, alguém tem que dizer sem compromissos de espécie alguma o quão distante deve agora chegar o novel Masquerade. Geograficamente falando, sobretudo.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

4 comentários:

  1. Àparte qualquer coisinha, tornou-se agradável, como sempre, a leitura indiciada da prosa. Dizia um músico conhecido das Américas numa entrevista...«é preciso que as pessoas fazam um statement»...a tradução é fraca, mas a dica é óptima. E o meu caro Pedro, tem arte no seu statement.

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  2. Não sei se é um statement, mas não me choca que seja visto dessa forma.

    Cheers!

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  3. .
    nada mouco, pedro.
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    nada mouco.
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