07 outubro 2005

Autárquicas 2005 - Mas o que é que os Rádio Macau têm que ver com isto?

Radio Macau

Ele há coincidências interessantes. Esta noite, num caso excepcional entre as últimas noites, mais cobertura televisiva da campanha às Autárquicas 2005. E, às tantas, vem-me à cabeça uma ficção que de forma escandalosamente generosa me foi pedida aqui há atrasado para o "Disco Pirata", o livro e o disco dos Rádio Macau.

Segue já a seguir e é inspirada na canção "Cidade Fantasma", do citado grupo português. Não era intenção fazer deste um espaço publicitário de coisa passadista, mas neste caso faz sentido.

Mas isso pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.


CIDADE FANTASMA

Alistem-se!, diziam eles. A propaganda, infiltrada no imaginário colectivo pelos mancebos romanos sistematicamente espancados por Astérix e Obélix, ecoa agora entre um tímpano e outro como jamais havia acontecido. Recordo facilmente aqueles rostos torturados por porrada de criar bicho, resignados com a sorte que lhes cabia. Eram rostos de inevitabilidade, de aceitação de uma das duas alternativas de vida em perspectiva: por um lado, levar nos cornos de uns quantos aldeões afeiçoados às suas coisinhas e às suas tradições; por outro, ter uma vida de orgias diversas. Ser-se funcionário dos Correios, vendedor ambulante de atoalhados ou industrial do Vale do Ave eram opções fora de questão.

Estamos em 2005 e, em boa verdade, nunca me passou pela ideia que alguma vez chegássemos a isto. Nem historiadores nem videntes alertaram a Humanidade para a possibilidade de isto acontecer. Quando um dia li a teoria que dá conta que, para uma geração ter qualidade de vida (conceito distante no tempo que agora tentamos alcançar através de listas de espera), a sua imediatamente anterior passaria por todas as privações e provações, não supus que alguém tivesse um dia que resolver a embrulhada que isso implicaria. E agora aqui me vejo eu, na fila com o letreiro que diz “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”, voluntário para dar corpo a esse movimento de repovoamento das grandes metrópoles do século XX. Por ora, não sei dizer em que estado se encontra Lisboa, Londres ou Nova Iorque, mas pelo que tenho visto na televisão a coisa está em tom cinzento escuro, que é o tom do abandono quando ainda se acredita que o abandono é apenas um estado transitório. Para ser claro, aquilo em que agora me vejo envolvido é o resultado do que foi definido pela Comunidade Internacional de Economistas Humanistas como o Êxodo Urbano. É um fenómeno que, no espaço de cinco anos, deixou todas as grandes cidades mundiais entregues, apenas e só, a quem as “dirigia” por alturas do primeiro referendo de carácter planetário. Com uma pergunta simples: “ainda acredita que vai ser feliz e que para isso muito continuarão a contribuir as elites próximas ou mesmo juntas do poder?”. O que ainda hoje me parece espantoso é que o colapso se deu no dia em que esse digníssimo factor chamado abstenção foi de 100 por cento (ou perto, uma vez que as citadas elites também têm cartões de eleitor). De cada vez que faltava a um qualquer acto eleitoral, sentia-me um vencedor anónimo, facto que era compensado por todas as alocuções pós-eleitorais captadas em directo para a rádio, a televisão e a internet. “Quero, em nome do meu partido, mostrar a mais profunda preocupação com os níveis de abstenção registados neste exercício democrático” – esta era a minuta dos discursos no período derradeiro da consulta popular, se bem me recordo no final de 2000. Havia quem dissesse que muitos de nós teríamos preferido a praia às urnas, quando na realidade muitos de nós preferimos abraçar com convicção e brio a campanha Tolerância Zero.

A coisa começou, portanto, há pouco menos de cinco anos quando todas as estações televisivas do mundo com intervalos para anúncios e entretenimento começaram a mostrar líderes políticos em marcha de agonia para os púlpitos onde habitualmente exercem publicamente aquilo para que estudaram – a retórica. Por essa altura já o conceito de fuso horário tinha sido abolido pela aliança Estados Unidos-Taiwan-Afeganistão e em consequência tudo se passou em simultâneo, em directo e a cores. Cinco minutos depois do encerramento das salas de voto, os canais estatais interromperam a emissão normal e, sem explicação, colocaram no ar música de teor remotamente religioso (uma vez que por esta altura também todas as religiões tinham sido abolidas) sobre fundo negro. Mais cinco minutos e morriam todas as empresas estatais e as bolsas de todo o mundo disparavam os índices dedicados às empresas de comunicação. Estávamos todos colados às estações privadas, portuguesas, inglesas, americanas, árabes, sul-africanas, neo-zelandesas. Em todo o lado a mesma coisa: ninguém votou. Foi o dia do consenso entre todos os comentadores políticos do globo. “A democracia bateu no fundo”, “O Homem canibalizou a sua liberdade”, “A responsabilidade é dos Estados Unidos” e “As nações do mundo decretaram falência” foram expressões proferidas e ampliadas na ocasião. Cinco anos depois, estou nesta fila com o letreiro “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”. Aqui cheguei depois de cinco anos de propaganda.

Mais preparada para a derrocada de toda a abóbada política do mundo do que o próprio conjunto de tarefeiros que a compunham, a Humanidade viu-se a partir de 2001 envolvida na mais importante revolução social da História recente. Foi como se, de um momento para o outro, o teledisco de “Everybody Hurts”, dos R.E.M., passasse a manual de instruções. A inovação: ao largar os automóveis topo de gama com barras de tejadilho para levar os esquis a passear ao Chiado, aos Champs Elisées ou à 5ª Avenida, a população rumou ao campo, aos pontos periféricos, respondendo assim afirmativamente ao decano apelo de voltar a povoar lugares afectados pela então muito propalada “desertificação”. E nesses locais está instalada até hoje, o primeiro dia do segundo Êxodo Rural. Nos anos mais recentes, não sei precisar quantos, e como orçamentos de Estado passaram a ser documentos perfeitamente inúteis dada a mobilização popular no sentido da orçamentação individual e familiar, foram vários os pontos altos na campanha do repovoamento das cidades paga com os últimos cobres das elites. Só de memória, recordo-me de ler, na qualidade de um de 487 destinatários de um e-mail supostamente humorístico, um anúncio publicado num jornal diário de uma pequena povoação do estado norte-americano do Texas – “Venha viver para Nova Iorque, a cidade que já consegue dormir. Finalmente terá o sonho americano”. Como me recordo, por exemplo, de ler sobre homens e mulheres de todas as ex-forças políticas portuguesas a percorrer as ruas de Cuba, Alentejo, empunhando faixas e distrribuindo panfletos em que se lia: “Lisboa e Porto esperam por si. Venha conhecer as vantagens de viver numa metrópole renascida”. Como é óbvio, nada tinha ainda renascido e era por isso que agora me encontrava na fila com o letreiro “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”. Segundo li, chegou mesmo a montar-se o famoso sistema piramidal para a aquisição de parcelas de cidades como Paris, Pequim, Nova Deli, Buenos Aires e Montreal. Como em todos os outros casos de sistemas piramidais, em que em tempos participei com a tarefa de vender comprimidos para emagrecer com vista à conquista de um automóvel todo-o-terreno e de um apartamento tipo loft junto ao Rio Tejo, também estes não funcionaram. Tornou-se, consequentemente, muito mais caro o metro quadrado em Montes, entre Tomar e Ferreira do Zêzere, do que em Milão, Zurique e Copenhaga.

Estou aqui porque os líderes que restam, apesar de não reconhecidos legitimamente, garantiram que haveria benefícios fiscais e um período de time-sharing numa cidade mundial à escolha com mais de três milhões de habitantes para quem se inscrevesse na primeira fase do segundo Êxodo Rural. Já me tinha, em tempos, escapado a privatização da EDP e da Brisa, mas desta vez não me apanhavam desprevenido. Certo é que, extintas todas as organizações dedicadas à colecta de impostos, a conversa dos benefícios fiscais era tudo menos verosímil, mas a ideia de fugir ao bulício do campo preenchia-me os sonhos há tempo assinalável. Vim para a Beira Baixa em 2001, meses depois da hecatombe democrática, e já nessa altura me senti sufocado pela presença de 300 mil pessoas numa aldeia com 28 quintais e 12 terrenos com mais de dois hectares. Lembro-me de, no dia em que cheguei, numa das últimas viagens realizadas pelo último exemplar Jumbo da Boeing, ter encontrado em Martineca do Rio algo de muito parecido com aquilo que há anos havia visto num sábado no londrino Hyde Park: rostos felizes no topo de corpos encaixados em espreguiçadeiras listadas de verde e branco. Como se todo o trabalho do dia, da semana, do mês e do ano estivesse já feito e todo o tempo restante fosse, na verdade, o tempo em que se vivia. Surpreendentemente, era isso mesmo que se passava. Foram precisas apenas três pessoas para organizar a vida em Martineca do Rio – um gestor agrícola, um ex-dirigente de um ex-grande clube de futebol e um engenheiro informático. A população ali decretada como activa, com idade entre os 35 e os 44 anos, trabalhava entre as 11h00 e as 13h00, de sábado a quarta-feira. Com um gestor agrícola, a terra produziu até ao canto do cisne, até não mais conseguir produzir para 300 mil pessoas. Ainda assim, Martineca do Rio era o topo de gama do triunfo do sector primário. Com um ex-dirigente de um ex-grande clube de futebol, a construção civil e as estruturas básicas desenvolveram-se em menos que nada e sem que qualquer verba fosse questionada. Assegurou-se assim a sobrevivência do sector secundário. Com um engenheiro informático, todas as relações interpessoais de natureza sobretudo profissional passaram a estar de tal modo acessíveis e adequadamente registadas que cedo desapareceu a inveja e se estabeleceu a harmonia. Não será necessário, portanto, enunciar outras razões para verificar a eficácia do sector terciário. E havia 563 homeopatas.

As cidades, as grandes cidades, são por esta altura cidades fantasma. São o último reduto de meia-dúzia de dementes que não ultrapassou o choque do Êxodo Urbano. O facto de todos eles serem os autarcas dessa época, algures em 2000, também ajuda à permanência. Na política, o comandante é efectivamente o último a abandonar o barco, como é mais do que sabido. Segundo sei, e nisso reside parte do fascínio que encontro em regressar a um mundo outrora triturador, nada mudou nas metrópoles à excepção da ausência de pessoas. A avaliar pelas imagens difundidas pela televisão, em Lisboa o Centro Comercial Colombo está há quatro anos aberto mas vazio e no Porto a Ribeira continua linda e acolhedora mas vazia. É assim por todo o mundo que já se disse civilizado mas que nunca mais foi avistado por quem quer que seja, à excepção de indivíduos com um cartão que diz “Press”.

Com base nessas imagens oníricas, nesta primeira fase somos 29 a sair de Martineca do Rio. O número máximo permitido neste primeiro mês é de 30 por cada aldeia com 300 mil habitantes. Franz Hubbard morreu esta manhã e, como o engenheiro informático está em primeiro lugar da fila, não houve tempo para proceder a uma substituição justa. Não sei se ficou claro, mas o Êxodo Urbano trouxe a Martineca do Rio gente de toda a Europa e parte do Norte de África. Franz Hubbard era um alemão de 36 anos que morreu quando fazia o pequeno-almoço para os seus namorados, Ingrid e Klaus, na manhã da despedida. Hoje, portanto. O processo de selecção dos destinos dos 29 aqui à espera é coisa que ainda dos escapa, mas lembro-me de algumas questões do formulário que preenchi há mês e meio: “Alguma vez esteve em contacto com uma intituição de crédito?”; “Compromete-se a não poluir a sua cidade de destino?”; “Sofreu de ansiedade e/ou depressão nos últimos 36 meses?”; “Por que razão se absteve no referendo planetário sobre felicidade e perspectivas de vida?”. Numa outra parte, elencavam (palavra que aprendi com um grupo de cinco consultores financeiros ingleses em Martineca do Rio) os destinos possíveis nesta primeira fase do segundo Êxodo Rural, 400 cidades de quatro continentes com menos de 10 habitantes. Entre elas, Lisboa, Tóquio e Bogotá, estas entre as minhas cinco últimas escolhas, juntamente com Paris e Nova Iorque. Não quero pensar demasiado na cidade que tenho como primeira escolha, porque não acredito que me seja atribuída.

Conto 18 passos e páro. Quando, à minha frente, vi o engenheiro informático ser colocado em Amsterdão, pensei em ficar, senti o corpo transformado num formigueiro único e um calor no couro cabeludo. Eu não iria, agora com toda a certeza, para o meu destino preferido. Nessa altura, apesar de tremer e de não ter qualquer ansiolítico, tomei a decisão difícil de seguir em frente. Um homem sem expressão entrega-me um envelope e aponta-me uma entrada, em tudo semelhante às que conheci como “mangas” nos aeroportos. Apago o último charro à pressa e abro o envelope. Cidade: Lisboa. Habitação: a definir. Profissão: a definir. Lisboa estava, pelos vistos, na mesma, para minha desgraça. Ao olhar para trás, fixo os olhos na frase-slogan da campanha: “Sê bem-vindo à cidade, rapaz”. Estou muito mais calmo. O arrependimento já teve tempo para instalar-se. Agora só falto eu.

Pedro Gonçalves
Janeiro 2005

2 comentários:

  1. wMais um belo contributo para a blogesfera..Benvindo e Parabéns!

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  2. Obrigado, playlist.

    Estou a dar uma vista de olhos pelo recpop.

    Bless!

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