03 outubro 2005

O tubo de escape

Fanfare Ciocarlia

A teoria não é de minha autoria, mas não sei de quem é. Li-a algures uma vez, numa entrevista ou coisa que o valha. Para mim, fez todo o sentido ver dizer que, para que uma geração urbana possa ter uma qualidade de vida razoável no espaço que ocupa, é forçoso que uma outra, a anterior, passe pelas maiores dificuldades na relação com o que a envolve, concretamente a cidade. A cidade de Lisboa parece-me diariamente mais insuportável, voraz na forma como consome aqueles que hoje andam, digamos, entre os 25/30 e os 35/40 anos.

Por isso, e pelo facto de também em matéria puramente ideológica muito se sentir que o esforço intelectual não compensa, há neste momento uma geração, se se quiser aquela que acima se identifica, a procurar aquilo que é usual chamar-se o escapismo. Não é necessário falar de drogas, embora também se possa entrar por aí, mas apenas de cultura e espiritualidade (seja lá o que isso fôr, tantas as definições com que a palavra se relaciona).

Há pouco chegado do concerto dos romenos Fanfare Ciocarlia no Fórum Lisboa, na cidade com o mesmo nome, a ligação entre aquele festim delirante com os factos descritos nos parágrafos anteriores tornou-se estranhamente nítida. Ali estavam, eufóricas e irrequietas, centenas de pessoas que em duas horas mantiveram um sorriso no rosto pelo contacto com um extracto cultural de algo que, à partida, não lhes diz qualquer tipo de respeito. Boa parte dessas pessoas pertence à tal geração, incluídos aí os militantes da atitude conhecida como freak.

O espectáculo, que acabou já no bar e a caminho dos camarins do grupo no Fórum Lisboa, incluiu tudo o que de bom pode advir, por exemplo, de um jantar bem regado. Pode um dos metais soar mais estridente, pode um elemento insistir com o outro para que sole um bocadito, pode um cantor pigarrear para limpar a voz de microfone em riste, pode tudo aquilo parecer um circo que qualquer um gostaria de ter num casamento ou numa festa de amigos. Mas entra tudo em nós, chamados ocidentais evoluídos, como faca em manteiga no Verão. Por razões que acima refiro, é tão longínquo que chega a parecer nosso.

E tudo isto para dizer que, por exemplo, a chamada música do mundo é um dos exemplos primeiros dessa urgência de escapismo por quem hoje se sente liderado por conservadores estáticos e imutáveis. Como é a cultura em geral. Como são as viagens cada vez mais "exóticas". Como é a negação de uma religiosidade morta sem saber que o está e a procura de outras que estão tão longe como, por exemplo, a Índia ou a China. Como o é, por exemplo, esse flagelo chamado "literatura de auto-ajuda".

A música, por muito pouco que connosco se relacione culturalmente, tende de facto a ser universal. A fazer-nos felizes mesmo quando não nasce dentro de nós. Mesmo que seja apenas um apoio temporário para enfrentar a luta em que nos meteram e em que nos metemos.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

2 comentários:

  1. N sei se foi 1 reflexo clássico de escapismo (talvez, talvez...), mas ontem, domingo (e o facto de ser domingo é essencial), depois de 1 ida ao final da tarde ao centro de 1 não-cidade (1 não-luga, precisamente) chamada Vila Nova de Gaia, q parecia ocupada pelos q n têm possibilidade de fugir (i.e., os velhos, os imigrantes), ouvir 1 coisa qualquer paquistanesa sintonizada ao acaso num programa da Antena 3 foi como q 1 purificação de 3 minutos e pouco.
    Estamos muito + pobres do q imaginamos (e n falo, nem remotamente, de questões espirituais/religiosas/whatever). É q estamos mesmo mt + pobres do q imaginamos.

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  2. Camarada:

    Bom ver-te por aqui... Saudades do teu raciocínio e da tua escrita.

    Por estarmos pobres procuramos ficar contagiados pela aparente riqueza nos outros, é isso que eu acho...

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