11 outubro 2005
O ar Jacinto Lucas Pires era escusado...
Será, certamente, a enésima vez que o digo, mas no dia em que toda a música desaparecer só nos lembraremos das canções. Podem manter-se referências históricas, biográficas ou outras no disco rígido humano, mas nessa altura toda a música que recordaremos será a música das canções. Por muito que tenhamos crescido a explorar música que nada tenha que ver com canções. Assim se explica, por exemplo, que um pai saiba hoje cantar com o filho as canções que este aprende na escola. É a memória selectiva e eu, pelo menos, tenho-a apurada em demasia.
Isto a propósito de "Cripple Crow", o novo, o quarto, álbum gravado em nome individual por Devendra Banhart. Devendra Banhart constitui para o signatário um daqueles casos caricatos de preconceito (se quiser, substitua pela palavra embirração) inicial e rendição posterior. Não serei tão radical quanto um brilhante camarada nortenho, que sempre fez gala em desprezar os cantautores barbudos, mas a verdade é que há um certo imaginário hippie que me provoca enjôos moderados. Ainda hoje, ao fim de consideráveis anos a ouvir música compulsivamente, sinto a falta de vontade de ouvir determinado disco ou determinado artista. Como ouvi há muitos anos, "não oiço os Pink Floyd porque tenho medo de gostar".
"Cripple Crow", o primeiro álbum de Devendra Banhart sem o selo da Young God, de Michael Gira, instala-se sem sobressalto nesse universo citado das canções. Não porque o criador tenha contado, para este registo, com um pouco mais do que a sua voz e a sua guitarra, mas porque na própria natureza dessa voz está a capacidade de desenhar melodias com que vozes muito mais poderosas não sonhariam. Esse é um dos méritos maiores de Devendra Banhart: as suas canções podiam ser todas a capella.
Tem muita fruta, este disco. Tem 23 canções que se desdobram entre, por exemplo, o pacifismo e um certo imaginário genérico latino-americano. Tem acompanhamentos e tem orquestrações. Tem vozes de coro e chega mesmo a ter groove (em "I Feel Like a Child"). Tem mais ambição, o que num disco é sempre perigoso. Tem uma hora e um quarto, o que também é um desafio ao agora. E tem esse delicioso "Santa Maria da Feira", inspirado na passagem de Banhart pelo Festival Para Gente Sentada. "Santa Maria da Feira" é um generoso delírio por ambientes latinos e bamboleantes, em que até pontualmente se ouve em sonhos artificiais o Quarteto 1111.
Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 Pouco Mouco.
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