20 fevereiro 2006

A dieta Nelson Motta

O Canto da Sereia

Se há coisa de que sou adicto é das lojas acopladas às bombas de gasolina, a que uns chamam de conveniência, a que outros chamarão áreas de serviço, a que outros ainda darão o título de local para destruição e pilhagem. São espaços fantásticos, com coisas deste mundo e de muitos outros, onde tantas vezes pão fresco convive pacificamente com diários desportivos, tabaco e bebidas energéticas para longas viagens de automóvel.

Num desses recintos comerciais, cuja identidade a memória tratou de apagar, encontrei ao lado das revistas aos magotes (uma miríade que vai do tuning aos meandros da vida no mercado accionista) umas prateleiras com livros, mesmo ao pé daqueles expositores maravilhosos com discos normalmente também maravilhosos. O mais comum, nessas estantes, é enfrentar o freguês a mais assumida literatura levezinha, daquela que praticamente pode ler-se enquanto se conduz e que se termina antes da placa que diz "Boliqueime".

Nada me move contra a literatura levezinha, a não ser as árvores que se perdem para publicar aquilo. Mas encontrar, entre livros de auto-ajuda e outros olimpicamente mais inúteis, o primeiro romance do brasileiro Nelson Motta é algo de praticamente sublime. Nelson Motta, para os menos atentos ou cuja memória é tão eficiente quanto a minha, já fez quase tudo o que há para fazer no universo da música brasileira, é jornalista, teve há uns anos valentes um programa na RTP com Eugénia Melo e Castro, debitou crónicas para o Diário de Notícias e ficou sobretudo na retina de uns quantos através de Manhattan Connection, o programa outrora exibido via cabo. Pois, para mim, Nelson Motta merece o céu é por Noites Tropicais, um dos melhores ensaios sobre música (no caso, parte da História da música brasileira) escritos na primeira pessoa que alguma vez pude ler. Noites Tropicais é uma peça gloriosa. Ponto.

Em torno do livro, na estante da área de serviço, estava uma cinta em que Pedro Rolo Duarte traduzia uma espécie de orgasmo mental a propósito do autor e do seu primeiro romance, este O Canto da Sereia. Retirada prontamente a cinta, despi vagamente o livro e comprei-o. Acabei de lê-lo na noite que passou. E das duas uma: ou Pedro Rolo Duarte não leu o livro ou leu uma edição diferente da que eu li. Como romancista, mesmo não esquecendo que se trata de uma estreia, Nelson Motta é uma cagada. Aqui é que bem se aplica a expressão: quem não sabe não inventa. Nelson Motta não sabe inventar. O que se percebe logo a meio do livro, embora quisesse esperar pelo fim para confirmar a teoria do acto falhado.

Basicamente, há uma moça. de nome artístico Sereia, que é rainha no Carnaval de Salvador da Bahia. E que morre com um tiro enquanto desfila as curvas em cima do chamado trio eléctrico. O leitmotiv é, desde logo, péssimo. O desenvolvimento, esse, é catastrófico, desesperadamente incolor e escrito com uma capacidade de encantar semelhante à do excremento de um rinoceronte. Tenho por hábito ler antes de adormecer. O Canto da Sereia fez-me adormecer quase sempre que peguei nele. A não ser quando a vontade de chegar ao fim para pegar noutro livro se impunha com veemência.

Augustão é um detective privado, cronista da treta que aproveita as historietas de adultério e afins que conhece para justificar uma coluna num jornal. E o livro anda às voltas da sua vontade, entre o profissionalismo e a alcoviteirice, de encontrar o assassino de Sereia. (Quando um crítico de música escreve uma crítica a um disco, fá-lo de forma a que o leitor saiba tanto quanto possível o que encontrar inscrito no objecto; nos filmes, como nos livros, isso não acontece, não se conta o final e a ideia com que fico é que com isso se presta, sobretudo, um serviço aos editores e distribuidores. Por isso mesmo, digo já que quem matou a Sereia foi o ex-detido que Mãe Marina acolheu no seu terreiro de candomblé). Nesse percurso de investigação, o pouco que se passa é, por Nelson Motta, transformado em coisa nenhuma. Tudo tem uma incómoda leveza, tudo se desenrola transmitindo a ideia de que o autor escreveu porque meteu na cabeça a ideia de que tinha que continuar o que começou, desse por onde desse.

Na contracapa da edição portuguesa do livro, Pedro Rolo Duarte escreve: "Nelson, peço-lhe do fundo do coração: não me surpreenda mais! Eu não aguento...". O apelo só não deve ser liminarmente ignorado porque, pelo menos para mim, ele é também sentido. Nelson Motta, que, ao que parece, tem já novo romance intitulado Bandidos e Mocinhas (promete...) não pode nem deve inventar nem mais uma linha que se pareça com esta coisa chamada O Canto da Sereia. Quem não aguenta sou eu.

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

3 comentários:

  1. Essa dieta emagrece os neurônios- expirada em fatos reais.
    abrazzo
    do Fã
    Julio

    ResponderEliminar
  2. Grande Júlio!

    Também já leste?

    Que desilusão, cara...

    Grande abraço.

    ResponderEliminar
  3. Conhecendo a figura, jamais perderia meu tempo com um romance da lavra desse malandro.
    Estou cá todos dias, seguindo como um talibã suas dicas de músicas - não me decepcionei uma única vez.
    Falando em desilusão, fui assistir um Vanessa da Mata no Canecão, empurrado pelo compromisso matrimonial, e que surpresa boa.
    A mocinha tem uma voz, presença em palco e repertório...
    Nome do disco: 'Essa boneca tem manual'
    Nota 7
    Mas dou 8 para o concerto.
    abrazzos

    ResponderEliminar