04 fevereiro 2006

A Naifa: 3 Minutos Antes de a Mare Encher

A Naifa

Tal como aqui havia partilhado há não muito tempo, A Naifa teve a gentileza de pedir a este vosso humilde escrivão que alinhavasse o texto de apresentação do seu novo álbum, 3 Minutos Antes de a Maré Encher.

Fi-lo e entreguei-o com a certeza de que não chega para descrever o que se passa dentro de um disco d'A Naifa, menos ainda dentro de um concerto. Esses, os concertos, vão felizmente voltar já no próximo mês de Março.

Com igual gentileza, A Naifa difunde agora aquilo que sobre eles escrevi e inclui a prosa na página de abertura do seu site oficial. A eles volto a agradecer o convite, consumado na tal noite engripada á porta do cinema Quarteto, em Lisboa.

Ao meu bem-amado Estado deixo uma garantia: não recebi um cêntimo para escrever isto.

Reza assim:

3 MINUTOS ANTES DE A MARÉ ENCHER

Nos 33 roufenhos segundos com que A Naifa inicia a sua segunda jornada por essa encantada visão daquilo que é a “música portuguesa”, aquela distância quente remete quem a ouve para um imaginário próximo da Tasca do Chico, ali no Bairro Alto, em Lisboa, catedral do fado vadio. A Naifa, como já havia mostrado em Canções Subterrâneas, a estreia em 2004, está sempre no fio da navalha, nesse jogo perigoso dos antagonismos estéticos e emocionais que oferece a quem a ela se dedica com ouvidos atentos. O que se segue a “Um”, precisamente o nome desses 33 segundos, tem muito pouco que ver com o fado vadio, nada que ver com a Tasca do Chico e menos ainda com aquilo que nasceu e se foi esboroando com o nome de “novo fado”.

3 Minutos Antes de a Maré Encher, nome resgatado ao título de um livro de poemas de Valter Hugo Mãe, carregaria sempre, quisesse ou não, o peso que a História consagrou à consecução de um segundo álbum, sobretudo quando o que lhe antecedeu reúne características como a inovação (quando não usada como adjectivo estéril) ou a suprema beleza com que raras vezes órbitas distintas se cruzam. A Naifa, esperasse-se ou não, pouco ou nada se deixou embeber no deslumbramento de uma primeira aclamação. 3 Minutos Antes de a Maré Encher será, com certeza, um disco de canções, porque é de canções que se faz esta música sem rótulo. Mas A Naifa de hoje não está mais afiada (porque não necessita disso) do que estava há dois anos, e é precisamente aí que está a génese dessa avassaladora refrega com que o quarteto, agora com Paulo Martins (dos Ramp, um dos melhores bateristas portugueses e oficialmente um dos mais versáteis) aborda quem a desafia. A Naifa de hoje está, sobretudo, segura daquilo que tem capacidade de trinchar, do anafado excesso de orgulho nacionalista ao grotesco conceito de que a emoção se transmite única e exclusivamente através do que é genuinamente tradicional. No dia em que A Naifa se transformar em tradição, não é esta que deixa de ser o que era, é a própria criação que deixa de fazer sentido.

São as audições sucessivas de 3 Minutos Antes de a Maré Encher que compõem a percepção de que, se a música popular é conceito e é contexto, n’A Naifa não há um só contexto para o mesmo conceito. É através desse processo de escavação dedicada que se apreende que A Naifa está hoje diferente daquilo que era há dois anos mas que, na sua essência, mantém como princípio primeiro a audácia de não ceder ao progresso porque sim. O progresso, n’A Naifa, faz-se neste disco através do primado da libertação. A libertação da obrigatoriedade do formato-canção – evidente quando o mesmo tema é cortado por silêncios calculados –, a libertação face à necessidade de fazer-se ouvir, sabendo ela que vai ser ouvida tal como está. E está repito, muito mais segura, pronta para arriscar um bom pedaço mais quando a esparsa electrónica é chamada para o processo, pronta para declamar mesmo quando a voz de Maria Antónia Mendes se agiganta quando canta, pronta para dar à guitarra portuguesa uma liquidez que, ao invés de ferir, acaricia as feridas feitas pela vida e por tanta outra música. Haverá quem em tudo isto possa ver contenção, mas a realidade passa muito mais pela urgência de experimentar mudar a decoração daquela casa portuguesa que figurativamente amamos habitar. Nunca possuir, porque A Naifa não se deixa possuir. Talvez alugar, mas nunca possuir.

A Naifa de 3 Minutos Antes de a Maré Encher é um disco cuja solução se encontra em quem o escuta e o lê. Inclui, no livrete que acompanha o disco, três poemas que não estão no alinhamento musicado, mas que se assumem como estímulos adicionais ao resultado final. Esse é novamente feito por gente deste tempo – Nuno Moura, João Miguel Queirós, Nuno Marques, Rui Lage, José Luís Peixoto, Tiago Gomes, Pedro Sena-Lino, Ana Paula Inácio e Adília Lopes. E onde dantes havia Amadeo de Souza-Cardoso, hoje há Sara Santos.

3 Minutos Antes de a Maré Encher, como a própria maré-cheia, deslumbra quando nos deixa flutuar em direcções variáveis: “Disse-lhe que Portugal ainda tinha muitos comunistas/ Mas o que ele queria saber era onde havia señoritas” (“Señoritas”); “E esqueces essa canção que já não passa na rádio/ Mas que vive secretamente dentro de ti.” (“Monotone”); “Não irei negar nunca que te amo. Nem mesmo quando estiver deitado, nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder” (“Todo o Amor do Mundo Não Foi Suficiente”); “Quando passo de automóvel/ Esqueço-me de onde moro/ porque sou meu lar imóvel” (“Antena”); “Sinto-me bem e deus queira que consiga não me masturbar. Ámen” (“Fé”); “Disse espero que encontres um homem que te ame, e ambos baixámos o olhar por sabermos que esse homem não existe” (“Quando os Nossos Corpos se Separaram”); “Porque me traíste tanto se os meus gatos são meigos?” (Porque Me Traíste Tanto?).

É uma maré que pode levar três séculos a encher. Mas enche e enche-nos.

Pedro Gonçalves
Janeiro 2006

Mas isto pode ser do meu ouvido, que é 1 pouco mouco.

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